quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Nona

A Alaíde Varella
Do fundo da sala eu a vejo.
Um rosto marcado por rios secos
Que afluem rumo ao passado
Nascente de cada um.

São tanto os fios já perdidos,
Deixados nos caminhos que viveu.
São uns gestos delicados
Que de suas mãos saem doces,
Quitutes mil que nos entram pelas narinas
E antecipam a chegada do que ontem foi passado.

Ah, minha doce velhinha,
Que saudade precoce de teus bolos e afagos.
Que despedida doída a cada aceno.
Que ternura encontro em tua voz,
Em teu andar, no teu café,
No teu olhar, no teu viver
Que invade a todos nós.

Foram dias e noites vencidos.
Anos e lustros ilustres ou esquecidos.
E o século findou.
E o milênio chegou.
Tudo passa,
Tudo se vai,
Tudo termina,
Somente ela é eterna e permanente,
Seja no espaço
Seja no tempo
Seja na memória
Seja no exemplo
Seja em mim...

A eternidade se avizinha
E parece emanar-lhe do íntimo...

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Um outro eu

            Sentado no carro com meu cunhado e minha esposa, o rádio ligado em uma estação de grande audiência aqui no Rio de Janeiro, levo um susto: a emissora anuncia o momento de “Literatura com o Cardoso”!!!
            Senti-me diante de um hiato. Cheguei mesmo a apalpar-me na ânsia de ter a certeza de que eu estava no carro e não em um estúdio. Mas se assim era como podia ser possível que estivessem a anunciar minha presença em um programa de rádio?
De repente tudo o que os físicos dizem sobre o multiverso passou a fazer sentido. Lá estava eu sendo anunciado em um lugar diferente daquele em que me encontrava conscientemente. Eu era eu e era ao mesmo tempo outro.
Senti que era quântico, cósmico, múltiplo, quintessência, intangível, incabível, inconcebível, pleno, total, macro e micro, alfa e ômega. Senti que era tudo e nada. Que estava em tudo e em todos. Tomei conhecimento de que era multi-eu, de que estava presente no espermatozóide que encontra o óvulo e ao mesmo tempo na última molécula que se desprende do pulmão de um moribundo. E a prova de que isso era real viria assim que eu começasse a falar ao vivo na rádio e me ouvisse no carro.
Comecei a falar pelos auto-falantes e percebi que não era a minha voz. Não eram as minhas idéias. Não era o meu pensar. Era um outro Cardoso quem falava. Um outro Cardoso individual que falava para que eu ouvisse.
Foi um momento quase frustrante. A experiência não foi o que eu esperava. Mas então já era tarde.
Eu já havia me conscientizado de minha própria multiplicidade.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

No Orto do Éter (inspirado em Fernando Pessoa)

À porta da casa da Quinta do Orto, um homem suspira. Tem a mão grudada na maçaneta e hesita entre o abrir e o manter fechado. Bem sabe que não importa a escolha que faça, mesmo fechada a porta se mantém aberta pelo simples desejo que ele teve de abri-la. Mesmo antes, sem que o desejasse, sem que nem soubesse da existência da porta, pois ela estava lá, ainda que invisível ou ignorada aos seus olhos fechados.
Precisa entrar. Entrar é a única maneira de sair... Ele não gira a maçaneta, mas abre a porta e entra.
Atrás das lentes dos óculos os olhos se fecham, pois a escuridão interna é ofuscante demais. É preciso acostumar-se aos poucos com esse brilho que emana das trevas. Só ali, no escuro, é que ele aprenderá a ver e olhar. É ali, no escuro, que ele encara seus sonhos e acorda.
Não há mais o caminho percorrido dantes; já foi esquecido para que possa ter a chance de ter sido real. A porta fechada atrás dele (que porta?), deixa lá fora (lá fora onde?) um mundo (que mundo?) do qual não precisa (quem?). Tudo o que ele precisa está ali, nesta casa escura que recende a éter. Ele precisa ter o éter. E ter o éter é ter e ter éter infinitamente, se é que o infinito existe.
Um largo corredor estende-se à sua frente e à sua volta. Um corredor que tem seguramente dois lados. Em cada lado aparecem portas. Estão todas trancadas. Estão todas abertas. Por esse corredor ele caminha sem ver as portas, mas olha o que há por trás delas; olha para não ver, olha para não pensar, olha para não sentir, olha apenas para olhar.
Em uma porta há uma criança que lhe acena do alto de um monte e grita “Ave atque vale”. É a porta que aponta para a eternidade de um lugar que já se foi.
Na outra há palavras escritas pela mão de alguém que decididamente é louco já que as palavras formam frases e as frases possuem algum sentido. É a porta para a qual poucos olham impunemente e os que tentam traçar-lhe um significado a vêem fechar-se com violência diante de si.
Mais uma porta mostra um homem diante de uma folha em branco, ele a lê. É a única folha que realmente tem algo que vale a pena ser lido em tudo aquilo que fala sem dizer nada.
Na seguinte há um velho cercado de relógios que não funcionam e se dizendo sem tempo. No tempo sem tempo, no tempo depois do tempo da velhice o homem pode encontrar-se, pois é ali, naquele quando, que ele se perde.
Ele continua passando pelas portas e olhando cada uma com seus horizontes e imagens guardadas. Ruídos de engrenagens, risos, caminhadas, olhares, paisagens, rugidos, fugas, segredos não guardados, um Deus que não existe e que é feliz por isso, procissões, corações dependurados no teto, inocências que se perdem e que se cruzam, versos, inversos, reversos, controversos...
No fim do corredor uma escada guardada por gatos brancos adormecidos e orvalhados se ergue e se espirala rumo ao teto já escuro.
Ele está muito ansioso por subir e se esquece que deixou a tal porta do outro lado do tal corredor destrancada, que o vento a abrirá e que a escuridão interna ofuscará a claridade opaca de algum caminho que, se é que existiu, o homem percorreu e já esqueceu.
E ele sobe.
Enquanto sobe sente que a escada desce, e ao sentir isso acaba pensando na escada e por um momento ela desaparece. Só deixando a escada de lado é que ela retorna aos seus pés, livrando-o de uma queda espetacular.
No topo da escada há uma última porta, guardada por figuras entalhadas que lhe recordam tempos idos de uma época que não conhece, mas que pulsa dentro dele com as recordações mais nítidas.
Com um leve empurrão ela cede. Cede e revela uma sala em que há um homem. Seu olhar não é comum. É o olhar de alguém que não vê enquanto olha, que não pensa enquanto vive, mas vive como anda e anda como vive.
Ele está deitado nos joelhos de uma criança eternamente humana e menino que lhe acaricia os cabelos e lhe canta canções de acordar. O homem que olha não sabe que o homem que dorme sonha e que em seu sonho há um homem que suspira com a mão na maçaneta da porta da casa da Quinta do Orto.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Enquanto Clara dormia

Sonho-te inteiramente.
Minha ilusão te afaga os cabelos.
Meu imaginário pressente tuas pálpebras móveis.
Minha ânsia em te ter comigo me lança
em delírios vagos e débeis,
te torna presente palpável,
te corporifica e te coroa.

A espera é infinita
(bom que não é eterna),
cada nascer e pôr-do-sol
aproxima mais o teu retorno
e o momento em que te verei pela vez primeira.

De braços em laço te receberei
e te soprarei aos ouvidos
histórias passadas presentes futuras.
E quando teus olhinhos se abrirem
me verei completo,
pronto para sonhar,
sabedor de nossa imortalidade.

Você vem de um lugar
onde os sonhos confundem o real.

Eu te aguardo,
você me vê,
nos sentimos pela pele,
me escutas daí
e me deixa ver teu pulsar.

A luz me dará você,
você que é tão minha
que é preciso ensinar-me
a te libertar.

Me infinitarei em teus traços...


terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando Pessoa: 75 anos de eternidade

     No dia 30 de novembro de 1935, falecia o poeta português Fernando Pessoa, genial criador dos heterônimos e um dos maiores escritores da história. Para lembrar os 75 anos de sua eternização, trago um poema que fiz para dialogar com o autor de Autopsicografia e que se encontra na coletânea "De Pessoa para Pessoa" (Ed. Litteris).


Pessoalmente falando
Meu coração
Comboio do imaginário sentir
Que por minhas mãos
Impõe-se à realidade
Dividido entre ter a razão
E não me pertencer.
Fingimento-verdade
Em completo e profundo
Movimento de ir
Em busca do não visto
E vivido.
Vivência alheia,
Outramento mimético do mimesmo,
Rodopio radical,
Racional...
Quem me lê
Não me vê,
Sente em si
Minha vida
Como sua.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Resistir não é inútil

     Durante a Segunda Grande Guerra, em diversas nações, uma palavra simbolizou a luta pela liberdade: partisan. Utilizada para denominar o membro de uma tropa irregular formada com o intuito de opôr-se a um governo estrangeiro, esse vocábulo popularizou-se sobremaneira durante aquele que é considerado o maior conflito do século XX e um dos maiores de toda a história. 
     Em vários países houve a resistência, muitas vezes com outros nomes, como os maquis (França), os Piratas de Edelweiss e a Rosa Branca (Alemanha). Vários nomes em torno de um mesmo ideal. Resistir, não se render diante de uma força estranha que busca submeter o espírito humano de forma brutal e violenta.
     Esses movimentos aclamados hoje como heróicos me vieram à lembrança em virtude da onda de violência que varre o Rio de Janeiro por estes dias. Não estou falando da resistência institucionalizada cujos representantes são as forças de segurança pública que, de forma organizada e equilibrada, estão combatendo as ondas de ataque de diversas facções criminosas. Falo de uma resistência muito mais forte. A resistência que vem diretamente do povo.
     Caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro hoje pela manhã, era-me possível sentir a tensão no ar, a sensação de expectativa, como se algo pudesse acontecer a qualquer momento. Sim, este sentimento está em todos e seria absurdo se fosse diferente, pois seria um sinal de que nossa indiferença finalmente atingiu níveis inumanos.
     O que me chama a atenção é o fato de que apesar do medo, apesar da tensão, os cariocas estão se negando a ceder a estes mesmos medo e tensão; não estão se rendendo ao sentimento de terror que está sendo inutilmente imposto à sua rotina. Estão todos buscando viver suas vidas e executar suas atividades com normalidade, em um comportamento que muito lembra o dos britânicos durante a Batalha da Inglaterra, quando as forças alemãs fizeram tantos ataques contra a ilha que as ruas viviam repletas de cartuchos das metralhadoras dos aviões.
      Sim, é possível resistir. É possível levar à efeito uma oposição pacífica sem que esta seja passiva.
     Talvez esta resistência dos cariocas não faça surgir nenhum nome de um indivíduo qualquer que se destaque em suas fileiras, como aconteceu com as resistências em vários países. E este é o grande trunfo da resistência carioca. 
     Não somos partisans.
     Não somos maquis.
     Somo apenas humanos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Canto infinito

Canto infinito


No meio do bosque
O cantor das copadas
Fez um pouso brusco
Que soou como derradeiro.
Seu trinado suave e forte
Reboava nas matas
Acordando seus irmãos.
Suas asas de um azul antes intenso
Já se haviam esmaecido
Para um tom meio sem graça,
Mas o canto que soltava,
Anunciando o amanhecer
Ou chamando a luz da lua,
Era o canto mais formoso
E, majestoso, dava gosto de se ouvir,
E não tinha uirapuru,
Pintassilgo ou canário
Que pudesse superar
O seu canto solitário.
E a passarada toda em festa
Soltava então os seus gorjeios
 Pra fazer segunda voz.
Do verão à primavera,
No outono e até no inverno,
O canto azulado se elevava
Mesmo quando tudo se aquietava.
E o tempo foi seguindo,
As cores das penas sumindo
E o canto inda mais vivo,
Mais firme e mais lindo.
Naquela manhã de sol
O Azul olhou pro céu
E sentiu o chamamento
De outro azul.
Soltou um suspiro musicado,
Uma lágrima derramou,
Foi virar canto infinito
E no infinito se lançou.
E a mata toda então vestiu luto,
Não teve mais cantoria,
Os pardais se recolheram,
As viuvinhas soluçaram,
Os colibris em revoada
Fizeram uma saudação.
Somente um seriema
De repente se lembrou
Que artista de verdade
Não morre, se eterniza.
E como uma homenagem
O seu canto estridulou
E a passarada toda em volta
A saudade cantou em cantos seus.
E o Azul eternizado
Recebeu tanta energia
Que rogou regozijado
Pra espalhar mais alegria
E virou cantor de Deus.

Glaucio Cardoso

sábado, 13 de novembro de 2010

Retalhos de memórias perdidas

     Do que é feita a história? Como ela se faz? Quem a faz?
     São questões que podem nos assaltar de vez em quando. O vulgo tende a achar que a história é feita apenas de grandes ações levadas à efeito por personagens inesquecíveis em momentos que passam à posteridade como decisivos. 
     É assim que acontecimentos como o Dia D, a Queda da Bastilha, os atentados de 11 de setembro se tornam na mente da massa fatos importantes, marcos históricos como se diz, e personagens como Hitler, Napoleão, Albert Sabin passam à história como heróis ou vilões.
     Mas o que dizer dos anônimos, ou quase, que tomam parte nos grandes acontecimentos? Não seriam eles também dignos de serem lembrados? E quanto ao ponto de vista daqueles personagens que colaboram, ou melhor dizendo, que são diretamente responsáveis pelos marcos históricos? Afinal, um fato só pode ser considerado de grandes proporções justamente por envolver o maior número de pequenos acontecimentos e de pessoas que dão seu quinhão à magnitude de qualquer evento.
     Estas reflexões me vêm à mente logo após a leitura de dois livros cujo tema é a Segunda Grande Guerra. Não, não se tratam de estudos sobre o grande conflito do século passado. Também não são textos com revelações dos bastidores da guerra. Tão pouco são narrativas de ficção ambientadas naquele contexto. São dois diários, isso mesmo, diários de guerra. Como se não bastasse, são dois diários de guerra escritos por brasileiros que lutaram na Itália.
     O Diário de Guerra (2008), de Rui Moreira Lima, e Diário de um Herói de Guerra (2006), organizado por Roberto Pessoa Ramos Neto, ambos publicados pela Adler, apresentam visões únicas e distintas sobre a participação da Força Aérea Brasileira (FAB) na campanha aliada em território italiano. É interessante notar como os mesmos acontecimentos podem ser narrados de forma tão diversa dependendo de qual for a intenção daquele que o narra. 
     O livro de Rui Moreira Lima, que já tinha brindado o público interessado pelo tema com o antológico e obrigatório Senta a Pua! (1980), apresenta anotações feitas in loco, isto é, em pleno campo de batalha, com as descrições resumidas das missões cumpridas pelo então Tenente do 1º Grupo de Aviação de Caça; anotações estas que  registram os componentes das esquadrilhas, os objetivos da missão e os alvos destruídos. Apontamentos feitos de forma metódica em pequenas cadernetas e que foram enriquecidos posteriormente por descrições mais detalhadas, inclusive com indicações sobre o desfecho de alguns acontecimentos.
     Já o Diário de um Herói de Guerra traz os apontamentos do então Capitão Roberto Pessoa Ramos organizados por seu neto homônimo. O que chama a atenção neste segundo título é o despojamento da escrita do jovem piloto brasileiro. Não há nele a preocupação em apresentar os dados ou os fatos de maneira acadêmica, formando antes um amálgama de registros e impressões, nos quais a visão pessoal do ser humano demonstra bem a garra, a fibra e o idealismo do guerreiro.
     Ambos os títulos servem como janelas para o passado, através das quais o leitor tem uma oportunidade rara de ver a guerra e a participação brasileira sem nenhum  artificialismo de discursos pseudo-ideológicos que se poderia esperar de livros com tal temática.
     Em um tempo dominado por uma visão que busca parecer intelectualizada, mas que disfarça sua superficialidade com palavras de efeito pronunciadas aos berros, em que o elogio a qualquer aspecto de nossa história militar vira motivo para sermos acusados de reacionários, em que ser patriota virou sinônimo de concordar com tudo o que a massa ignorante aceita vindo de cima, em que o Poder Total busca sutilmente impedir a liberdade de expressão e de pensamento, é oportuno lembrar destes esquecidos, injustiçados guerreiros que lutaram pela liberdade em um mundo cuja loucura só seria suplantada pela alienação de nossa época.
     Lutar pela liberdade com a bandeira de um país cujo poder era reconhecidamente totalitário pode parecer  hipócrita se visto com o olhar viciado por discursos vazios de ideal, como são os de nossos dias. Mas a verdade salta das páginas dos diários como a nos cobrar: o que vocês fizeram de nosso sacrifício?