segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O herói de mil faces – impressões de um leitor





A poucos dias terminei a leitura de O herói de mil faces, de Joseph Campbell (Foto à direita). Durante anos ouvira falar dessa obra e lera muitos excertos da mesma, principalmente aqueles que procuravam resumir o que se convencionou chamar de a Jornada do Herói, sem nunca ter conseguido o livro em si. Até que finalmente o encontrei na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro (setembro/2019).
            Não tentarei fazer um resumo do estudo de Campbell, pois creio que seria no mínimo desrespeitoso para com um trabalho de tamanho fôlego e relevância. O que se segue é apenas um amontoado de pensamentos, talvez ainda imprecisos, que sua leitura semeou em minha mente e que, creio, me acompanharão por tanto tempo quanto eu me permitir pensar o humano e o literário sob a ótica do mitológico conforme exposto pelo autor.
            Quer aceitemos ou não, somos todos frutos das narrativas que nos perpassam. Desde os mitos fundadores ancestrais, até as narrativas cinematográficas, passando pela literatura em todas as suas vertentes, pelas histórias em quadrinhos, pelas piadas contadas em volta de uma mesa, somos seres que aspiram ao mitológico, que nos encontramos nessa caminhada composta de inúmeras etapas.
            A Jornada do Herói, o monomito estudado por Campbell, se encontra arraigada na própria formação das sociedades e dos indivíduos. O grande mérito do estudo desse autor estadunidense reside no fato de não privilegiar nenhuma mitologia em detrimento de outras.
No mesmo nível se encontram deuses como Zeus e Exú, o herói Gilgamesh e a dona de casa, os relatos fundadores e os sonhos, quando Campbell dialoga com a psicanálise de forma inteligente, embora não isenta de questionamento, o que só enriquece o pensar sobre seu trabalho.
Há espaço para se pensar na figura central do Cristianismo, Jesus, como sendo um herói típico das narrativas primitivas ou literárias, demonstrando ser ele o humano que se diviniza por seus próprios méritos, diferente do enviado divino distante da humanidade, cujos feitos e ações são inalcançáveis pelos “simples mortais”, conforme a religião institucionalizada acabou cunhando. Para Campbell, é como se o Cristianismo, ao elevar Jesus à condição de inigualável, traísse suas palavras: “Vós sois deuses, o que faço podeis fazer e, se quiserdes, muito mais”.
Essa aventura do herói seria refletida em cada ação nossa, mesmo a mais corriqueira, pois estamos imersos em mitologias coletivas e pessoais, sem que seja possível estabelecer uma real fronteira entre elas. Nossa jornada se confunde com a jornada do coletivo e é prova de amadurecimento quando entendemos esse coletivo para além das fronteiras inventadas pelas nações.
Num tempo como o nosso, em que diversos países veem o surgimento e a ascensão de líderes pseudonacionalistas com pretensões fascistas, é impressionante ler esse trecho em uma obra publicada há mais de 70 anos:
Nos nossos dias, a comunidade é o planeta e não a nação com seus limites; eis por que os padrões da agressão projetada, que antes serviam para coordenar o grupo voltado para si mesmo, hoje podem apenas dividi-lo em facções. A ideia de nação, com a bandeira servindo de totem, serve hoje de elemento engrandecedor do ego infantil, e não de elemento aniquilador da situação infantil. (2007:373)
            Não se trata de abolir o sentimento de pertença a uma nação, mas de amadurecer essa ideia de nação para abarcar todo o planeta do qual fazemos parte.
            Vivemos por vezes tão preocupados com o imediatismo de nosso dia a dia que soa estranho que alguém volte o olhar para o passado. Aí reside um erro de interpretação que a massa comete em sua cegueira: achar que o passado realmente passou. O passado, os mitos, lendas e narrativas são em verdade nosso presente e nosso futuro, pois sem ele não somos ou seremos.
            Haveria ainda muito o que dizer a respeito de inúmeros trechos do livro, mas creio que preciso de tempo para amadurecer as ideias que ele me fez fervilhar no cérebro.
            O livro merece ser lido e relido, seja por estudiosos, seja por curiosos. Não vou enganá-los dizendo ser uma obra cuja leitura pode ser feita apressadamente. É tão rica de ideias e informações que precisará de tempo para ser devidamente apreendida. Talvez ao longo de uma vida inteira.
Glaucio Cardoso
O herói de mil faces
Joseph Campbell
Ed. Cultrix/Pensamento
414 páginas.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Contradições



Penso que o avião,
Seja lá quem o inventou,
Talvez seja a mais poética das máquinas.
Toda aquela bruta materialidade de aço,
Cabos,
Combustível,
Luzes
Se combinam em uma forma
Ao mesmo tempo bela e poderosa,
Verdadeiro objeto barroco
Composto por contrastes.
Toda a força de motores e turbinas
Empregada para elevar os homens
Até o mais etéreo dos lugares,
Onde nos vemos tão pequenos
Que bem passaríamos por insetos.
Ainda assim,
O homem é egoísta o bastante
Para olhar pela janela
E dizer que eles, os outros,
É que parecem formiguinhas.
Do alto, nossa perspectiva é outra,
Embora teimemos em continuar os mesmos.
Do alto, somos todos insignificantes,
Mas ainda buscamos dar significado
Ao nosso existir.
É do alto, enfim, que podemos entender
A dura verdade
De que somos
Todos passageiros.
Glaucio Cardoso
25/05/19
A caminho de Florianópolis para uma oficina de poesia na sede do NEA.