Primeiros
livros
Gosto
de lembrar de meus dois primeiros livros de poesia.
Quando falo nos
meus dois primeiros livros de poesia, estou falando de dois tipos
diferentes e ainda assim semelhantes: o primeiro que li e o primeiro
que escrevi.
Não
sei quando foi que li Garimpo
(1989),
de João Prado, mas lembro que foi o primeiro livro só de poemas que
tive (os de escola não contam) e que devorei em poucas horas e
pelo resto da vida.
Ali
descobri que a poesia podia, entre outras coisas, falar do passado e
do futuro, mesmo quando parecia pisar o agora. Vi o poeta lembrar da
figura de seu pai, falar dos filhos e da amada. E descobri que era
possível manter
a esperança e o otimismo, mesmo diante de tantas dificuldades, como
no poema “Recado”:
Escuta
o recado
que
eu trago guardado
no
fundo do peito:
não
busque esperanças
no
fundo de um copo
nem
ponhas no mundo
profundos
defeitos.
[…]
Também
entendi que era preciso nos livrar dos preconceitos que insistimos em
cultivar, como quando o poeta me levou a ver a favela como espaço de
alegria, vida e resistência:
Quando
se fala em favela
tem
muita gente que pensa
que
favela é só muamba,
malandro,
escola de samba.
[…]
Vai
na favela doutor,
vai
na favela aprender
que
a gente que sobe o morro
carregando
lata d’água
tem
raça pra batucar
na
lata, quando descer.
Vai
na favela doutor,
vai
na favela aprender
que
um barraco de madeira
é
bastante pra viver.
Vai
doutor, vai na favela,
vai
olhar pela janela
de
um barraco o que é viver.
Vai
na favela doutor,
vai na favela aprender.
Às
vezes sinto que nunca terminei de ler o Garimpo,
pois cada novo livro de poemas que inicio a leitura parece existir
à sombra dele, como se eu buscasse encontrar em cada um o mesmo
encantamento que o livro de João Prado me provocou. Alguns chegam
bem perto; outros passam longe; nenhum se lhe iguala ou supera.
Meu
outro primeiro livro, Enquanto
Clara dormia (2011),
nasceu
meio que por acaso. Eu estava vivenciando a alegria eufórica do
nascimento de minha filha caçula e me peguei organizando poemas que
vinha escrevendo a algum tempo.
Por
força da profissão, eu tinha consciência de que muitos autores
renegam seus livros de estreia após alguns anos; por isso quis fazer
algo que pudesse permanecer como algo relevante em minha trajetória
na escrita. Descartei muitos poemas e reescrevi outros tantos.
Para
evitar a armadilha de que a influência de meu autor predileto se
fizesse muito óbvia, evitei aqueles poemas nos quais emulava seu
estilo de escrita.
Passados
dez anos, noto que nem sempre alcancei meus objetivos neste livro,
mas, ainda assim, me orgulho muito do que há nele, como o prefácio
assinado pelo meu querido poeta João Prado, ou o poema “E se
for…”, que já serviu até para campanhas em defesa da vida, ou
ainda “Prece de um filho”, onde me permiti romper com meus
próprios paradigmas e escrevi o mais religioso de meus textos ao
rogar “Senhor, tende misericórdia das putas…”.
Mas
o que mais me encanta neste livro ainda hoje é seu último poema,
que escrevi para passar o luto pela partida do meu pai e que foi o
poema que fez com que pela primeira vez me chamassem de POETA!
O
Mundo e Ele
Ele
ficava feliz
E
o mundo todo o imitava;
Quando
ele acordava bem humorado
O
dia amanhecia mais bonito;
Se
os pássaros cantavam da manhã até a tarde
Era
por ele ter passado o dia assobiando.
Ele
respirava fundo num sorriso
E
a brisa corria suave e amena.
Quando
à tarde ele se espreguiçava com satisfação
As
estrelas sabiam que era hora de aparecer.
E
se ele ficava pensativo
O
mundo se enchia de filosofia.
Um
dia ele me olhou nos olhos
E
eu me vi todo nesse olhar.
E
quando seus olhos se fecharam
A
noite se fez completa,
As
estrelas rolaram como lágrimas do firmamento,
E
as nuvens cobriram todo o céu
E
apenas uma janela se abriu
Para
o sol iluminar seu leito.
E
naqueles olhos fechados,
Sonhadores
de sonhos nunca sonhados,
Senti-me
um adulto acordando...
Hoje,
o sol ainda brilha,
As
estrelas aparecem de novo,
Há
dias tão belos quanto os de antes
E
os pássaros recordam velhas canções
Isso
me faz saber mais do que acreditar
Que
ele continua a cantar,
A
sorrir,
A
pensar,
A
viver.
Para
uns ele era um amigo,
Outros
o chamavam de irmão,
De
alguém ele foi o filho,
De
um outro alguém foi coração.
Mas
se de mim quiserem saber
Eu
direi simplesmente:
“Ele
era meu Pai.”
Glaucio
Cardoso
Março
de 2022