terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Observador quântico


A caixa está fechada.

Tudo é possível,

tudo é provável.

Vivo e morto,

vivo e morro,

na infinitude diversa

de combinações.


A caixa está fechada.

Olhe e sou partícula,

feche os olhos e sou onda,

olhe de novo e sou de novo

parte inteiriça ondulável.


Vida: partícula visível.

Morte: onda invisível.


Passo de uma à outra

pela percepção do outro.

Partícula que parte de parte

da onda que anda e tresanda

partes de onde andou.


A caixa está fechada

e lá dentro um invisível gato

morre

e respira

e morre

e espreguiça,

enquanto Schrödinger suspira

possibilidades relativas.

Quanta diversidade a observar

no tempo de um murmúrio.


Sou o observador.

Sou o observado.

Estou agora

e outrora

e aurora.

No instante em que comecei a ser,

já tinha sido e sempre seria,

sempre serei,

sempre sou.


A caixa está fechada,

e, por isso,

tudo está em aberto.

Glaucio Cardoso

24/12/22

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Memórias de um amante da poesia - 04

 Livros intermináveis

Acabar um bom livro é como deixar um bom amigo”.

William Feather (1889-1981)

Há algo de estranho com livros de poesia.

Quando alguém fala de um romance, por exemplo, e diz que “não conseguiu parar de ler”, fica subentendido que a pessoa leu o livro quase que de uma sentada só. Vem à mente a imagem de um leitor compenetrado na leitura de uma história, vivendo ao longo de um dia inteiro (ou talvez dois) as vidas daqueles personagens com os quais se identificou, sofrendo com suas tristezas e vibrando com seus sucessos, desejando ardentemente que o vilão receba seu castigo ao final da história.

O mesmo não se dá com livros de poesia.

A frase “não consegui parar de ler”, aplicada a um livro de poemas tem um sentido bem diferente.

Ao contrário de romances, contos e outros tipos de narrativa, a poesia não nos exige pressa de acabar, na realidade a poesia representa uma traição à rotina da vida cotidiana, sempre corrida, sempre cobrando das pessoas que não se demorem demais, pois tempo é dinheiro, comida é dinheiro, amor é dinheiro, vida é dinheiro, tudo resumido a um eterno aqui e para ontem que nos assola. A poesia rompe com tal lógica.

É claro que podemos imaginar um leitor devorando páginas e mais páginas de um livro de poemas, principalmente quando este o empolga, com uma celeridade absoluta. Entretanto, mesmo quando o leitor percorre as páginas de um livro de versos com olhos famintos, esta leitura será repleta de pausas e silêncios, ou não será leitura.

Há poemas e poetas que nos impõem longos momentos de análise, de espanto, de choque. São momentos nos quais muitas vezes nos vemos obrigados a largar o livro e ir fazer algo mais prosaico como assistir uma série, lavar a louça, cuidar dos cachorros ou simplesmente ficar sentando olhando para algum ponto situado entre nós e o infinito. São momentos em que sentimos a necessidade de voltar para nós mesmos, para aquele lugar de onde o poema nos retirou, nos deixando em estado de suspensão.

Quando somos arrebatados por um livro de poemas, não conseguimos parar de lê-lo, mesmo quando saímos para o trabalho e deixamos o livro em cima da mesa, ou no braço do sofá. O livro ficou e também nos acompanha, pois a leitura de um poema não termina no último verso, assim como a leitura de um livro não se acaba na última página.

Atualmente isso tem me acontecido com certa frequência. No momento em que escrevo estas linhas, não consegui parar de ler pelo menos dois livros de poemas. Um é o recentemente lançado É chegado o tempo de voltar a superfície, de Alberto Pucheu, do qual já li metade dos poemas que o compõem. A cada texto lido, sinto uma irresistível necessidade de parar e olhar ao redor, de soltar o livro e o manter junto a mim, de fechar as páginas depois de cada “só mais um e chega por hoje”.

Outro livro que não consigo parar de ler é Metade cara, metade máscara, poesia indígena de Eliane Potiguara que me retirou completamente de minha zona de conforto há mais de um ano, desde que cheguei à sua última página. Por vezes penso que o que mais fiz nos últimos doze meses foi revisitar cada um de seus versos tentando reencontrar uma parte de mim que sequer sabia perdida.

Talvez este seja o verdadeiro feitiço que a poesia lança em cada um de nós, essa impossibilidade de parar de ler os poemas. Talvez esta impossibilidade seja fruto do fato pouco comentado de que os poemas também não param de nos ler.

Glaucio Cardoso

30/11/2022

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Era


Era antigo

Como antigos são os sonhos

Que esqueceram de acordar.

Como as flores

Que secaram

Em um livro

Que ninguém mais folheou.


Era antigo

Como antigos são retratos

Que o tempo desbotou.

Como diários

Esquecidos

Que ninguém mais quer ler.


E era eterno

Como eternas são certas canções,

Como as palavras do profeta,

Como o amor que não se amou.


E era tudo,

E era nada,

E era tanto que acabou,

Tal qual lenda,

Tal qual mito,

Que a memória preservou.


Cavaleiro que galopa

Num corcel de sonho e cor

Assim sou eu e é você:

Personagens de uma história

Que se esquece de acabar.

Glaucio Cardoso

Abril/2018

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Memórias de um amante da poesia – 03

 Poesia: A arte do encontro

Em geral, poetas são vistos como seres solitários e individualistas. Há até quem nos julgue egocêntricos. Há certa verdade nessa visão, pois a poesia é uma arte que permanece, em grande parte, no terreno do sujeito, de onde vem “subjetividade”, empregada para definir a visão de mundo de uma única pessoa.

Vem daí a ideia comumente difundida de que o poeta nasce e escreve imerso na solidão.

Talvez surpreenda ao senso comum a informação de que poetas são também extremamente afeitos à coletividade. Adoram se encontrar para discutir versos, próprios e alheios, ler poemas uns para os outros, comparar textos, etc.

A poesia proporciona sempre os mais inusitados encontros entre poetas e leitores, entre poetas e poetas, entre leitores e leitores.

Quanto aos encontros entre poetas, é sempre um momento agradável, apesar de também marcado por certo nível de conflito, quando aqueles que se dedicam a escrever versos têm a oportunidade de se juntar. Esses encontros não se dão apenas nos eventos como saraus e lançamentos de livros, mas podem acontecer até no acaso de cada dia, num corredor de shopping, num café.

Uma vez, me recordo agora, estava atravessando uma rua na cidade vizinha à minha, voltando nem me lembro de onde, quando ouvi alguém gritando “Salve o poeta de Mesquita!”. Virei-me para o ponto de onde vinha a voz e dei de cara com o sorriso sempre contagiante do poeta Macedo de Moraes (o Griot!), a quem tanto admiro, que me abria os braços. E ali, naquele abraço não programado, em meio aos sons estridentes que caracterizam as nossas cidades, reafirmamos nossa fraternidade de poetas, de amantes dos versos.

Em outras ocasiões pude me encontrar com poetas em eventos, entrevistas e saraus. Alguns membros dessa confraria são muito próximos, outros apenas conhecidos. Há aqueles que lia muito antes de começar a escrever meus próprios versos, como Moduan Matos, Jorge Rocha e João Prado; outros que fui descobrindo em minha formação de poeta, como Alberto Pucheu, Maurício Keller e Merlânio Maia; e aqueles que mais recentemente aportaram em minhas leituras, como Luiz Otávio Oliani, Elciomar Rocha e Alberto Centurião.

A cada encontro, trocamos ideias sobre o que estamos lendo e escrevendo, dividimos sucessos e fracassos, e criamos expectativas quanto aos próximos textos e encontros.

Para um poeta, é sempre gratificante o encontro com seu(s) leitor(es). Saber como um texto que saiu de sua cabeça encontra novos significados para outras pessoas. Descobrir que elas podem admirar um poema que muitas vezes não recebe muita consideração de quem o escreveu.

Mas o encontro entre poetas e leitores apresenta ainda uma dimensão inusitada que é formada por atemporalidade e desterritorialização.

Como leitor de poesia, já pude dialogar com autores que vivem em lugares dos mais distantes. Atualmente tenho acompanhado um poeta português de nome João Negreiros. Seus poemas me chegam do outro lado do oceano. É pouco provável que um dia nos encontremos pessoalmente. Entretanto ele é alguém com quem dialogo, graças aos seus textos nos quais nos encontramos. O mesmo se dá com Bruna Mitrano, poeta do mesmo estado que o meu, mas com quem só me avistei por intermédio de seus poemas viscerais.

Há aqueles poetas que me chegam vindos de outros tempos. García Lorca, Alfonsina Storni, Konstantinos Kaváfis. Apesar de há muito tempo terem deixado seus corpos para trás e ido “estudar a geologia dos campos santos”, estes poetas são meus contemporâneos, são meus amigos.

E agora percebo que nem mesmo a língua poderá ser uma barreira que impeça os encontros poéticos. Sempre, ou quase sempre, podemos contar com as traduções e também, no meu caso, há aqueles poetas que escrevem em inglês e em espanhol e que consigo ler em suas originalidades.

Talvez seja esse o objetivo primordial da poesia: promover encontros; romper barreiras temporais, geográficas, linguísticas; pôr um fim à solidão na qual muitas vezes nos vemos imersos.

A poesia é, assim como a vida, a arte de promover encontros apesar de, e graças à, tantos desencontros.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

De vez em quando

De vez em quando

mude o caminho.

Vire à esquerda

ao invés da direita

ou vice-versa.

Dê a volta no quarteirão

ao invés de seguir reto,

volte atrás,

vá por uma rua

que não conhece,

você pode descobrir belezas novas,

paisagens inusitadas,

outros rostos alheios

e até outro você.


De vez em quando

mude um hábito.

Troque o ônibus pela calçada,

deixe o carro na garagem,

recupere a bicicleta,

troque o celular pelo livro

e a cara amarrotada

pelo bom dia sorridente.


De vez em quando

mude o cardápio.

Abandone o refrigerante,

beba suco de frutas.

Uma gordurinha cai bem,

mas uma salada não é nada mal

(ponha os dois no mesmo prato).

Só não esqueça que o que entra

não é tão importante quanto

o que sai da tua boca.


De vez em quando

mude o guarda-roupa,

aquela blusa puída

e aquela calça desbotada

já tiveram seus dias de glória,

já nem cabem mais na tua cara

e não há livro novo

com capa de antigamente.


De vez em quando

mude as coisas de lugar.

O sofá, a televisão, o tapete;

mude você de lugar,

podem haver moedas pelos cantos,

tesouros ocultos pedindo encontro.


De vez em quando

mude de canal.


De vez em quando

mude de cidade.


De vez em quando

mude de opinião.


De vez em quando

mude!

Glaucio Cardoso

13/10/22

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Llanto por García Lorca

 



Te siento en mí

Como uno recuerdo;

Es que estuve leyendo tu vida,

Tus poemas, tus angustias,

Y poco a poco

Tu llegaste.

He venido al mundo

Cuarenta años después

De tu partida.

He nacido anónimo

Como anónima fue tu muerte.

Ahora escribo en tu idioma

Cierto de los errores que cometo.

Necesito hacer de tu lengua

La mi lengua,

Para intentar romper

El abismo que hay

Entre nosotros.

Es que nuestros abuelos

Nos regalaron con el

Espíritu de España!

La misma España

En que tú caminaste,

La misma España

Que nunca he visto.

Me gustaría sentir

La luna gitana que tú cantaste,

Y danzar con las guitarras

Andaluces y llenas de encanto.

Es que en mí

Duerme un duende

Que sueña ser el tuyo,

Y por tú dejo derramarse

El llanto de cuantos

Versos no fueron escritos.

No pienso ser como tú,

Pero recuerdo tu poesía

Mientras busco la mía.


Glaucio Cardoso

17-18/09/15

sábado, 3 de setembro de 2022

Seguindo

 


Passei um tempo
Te recordando,
Como quem recorda
Um ex-amor.
Não que já tenha
Um dia te esquecido,
Mas datas redondas
Sempre parecem maiores
Com o tempo,
Embora formadas
Do quebrado de cada dia.

Difícil crer no tanto
De tempo que já passou,
Esse ano terminado
Em zero menos você.

Tantos chegaram
Na tua ausência,
Te contei àqueles
Que não te viram passar,
Como uma forma de
Segurar o tempo.
Mas areia e água
Escorrem das mãos,
Por mais força que se faça,
E assim outros te seguiram.

O caso é que
O tempo passou
E eu segui,
Segui sem você,
Mesmo você seguindo comigo.

Glaucio Cardoso
Para meu pai, no 20° ano de sua partida.
28/05/2022

domingo, 28 de agosto de 2022

O silêncio do Rei

 

Imagem: Giovanna Gonzaga


Chega o mês do número infinito,

mês que parece inacabável.

Mas é também o mês do recolhimento.

Do primeiro ao último dia,

nas trinta e uma manhãs,

trinta e um anoiteceres,

trinta e um passos,

trinta e uma oportunidades,

trinta e um momentos únicos,

do primeiro ao último,

um Rei caminha entre nós.


Seu rosto coberto não oculta seu saber.

Sua humildade discreta evidencia

a majestade de seu andar.

Sua reserva impõe reverência e respeito.

É preciso merecer sua presença.

Assim TOdos TOmam sua bênção

como de um avô amoroso, justo e nobre.


Neste mês longo e especial,

calemos nossas queixas e,

em nosso íntimo,

façamos silêncio,

pois o Rei está entre nós.

Glaucio Cardoso

19/08/2022

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Do luto

 



Escrevo como forma de luto,

na esperança de que versos,

com ou sem métrica,

com ou sem rimas,

com ou sem,

sem…

de que versos traduzam

as lágrimas que guardo,

tanto quanto as que correm,

na esperança de que versos

substituam a vivência de um luto

que não temos mais como nomear.


Escrevo como forma de luta,

na tentativa de que os versos

desatem os nós na garganta,

na tentativa de que os versos

sejam gritos de protesto,

de denúncia,

de resistência

a toda a opressão

e violência que insistem

em imperar a cada geração.


Escrevo em luto,

escrevo em luta,

me recolho no luto

sem me encolher na luta.


E entre o luto e a luta,

escrevo…

Escrevo na esperança de reunir

versos para curar o tempo.

Glaucio Cardoso

10/09/21

quinta-feira, 23 de junho de 2022

O espelho

 


Sou amigo de ideias

pouco exploradas;

talhado na mais simples

madeira sem lei.


Persigo incômodos,

prefiro os lugares incomuns,

aqueles mal estofados

onde ninguém quer sentar.

Por isso muitas vezes sou só,

só um sujeito pensante,

só um sujeito errante,

só num instante

em busca de um sextante

que me oriente

até EU destino.


Sou contra modismos,

contra superficialidades,

acho até que vivo contra o vento

só pra ele me fazer girar

feito o brinquedo de minha infância.


E por isso muitas vezes sou só,

como um personagem perdido num palco

sem ator que me anime.


E mesmo assim

sou feliz.

Pois nesta inadequação

realizo o desejo

de ser mais que apenas

igual ao que esperam que eu seja.

Glaucio Cardoso

22/06/22

terça-feira, 24 de maio de 2022

Cansaço



É duro esse constante reinventar,

Esse recriar dia-a-dia,

Esse resistir pela mudança eterna.

É que tudo em torno

Convida ao estagnar,

Ao permanente,

Ao acovardar-se.

E nesses dias

De portas cerradas,

De sonhos adormecidos,

De medo e angústia,

Em que o simples abrir

De uma janela

Nos põe em vista do mundo,

A dureza da permanência

Nos choca,

E chocados,

Espantados,

Assombrados,

Ainda assim nos levantamos

Uma vez mais

E, punho erguido,

Bradamos:

NÃO!

Glaucio Cardoso

(08/04/2020)

domingo, 24 de abril de 2022

Identidade

 



O que ainda faz eco em mim

é o canto de mil senzalas

e o pranto de mil porões.

A poeira que levantei

batendo pés no chão

de todas as tabas

cobre e aquece minha pele,

uma pele sem cor,

sem pátria,

uma pele que se choca

com a diferença

nos olhos que me olham.

Sou negro,

sou indígena,

vermelho de sangue,

vermelho de raiva,

vermelho (às vezes) de vergonha

ou de choro.


O que ainda faz eco em mim

é o silêncio de todos os por quês

sem resposta,

a ausência de todas

as mãos não estendidas

e os soluços sem alento.


Mas também sinto

o ecoar da esperança,

o reverberar das cachoeiras

e os cantos que moram em mim.


Sinto o ecoar do orgulho

de ser quem sou,

de ser quem fui,

ser quem serei.


Sinto que não se cala

a voz que dá voz

às vozes dos que

ousam crer no amanhã.


Sinto ainda ecoar em mim

a certeza de que

sou o som

e o eco.

Glaucio Cardoso

em algum dia do segundo semestre de 2021

segunda-feira, 21 de março de 2022

Questão de Gênero

 



Quando em mim

Cessarem todas as funções;

Quando meu corpo

Tornar-se casca oca

Tomada pela rigidez;

Quando eu me despedir

Dessa terra por onde caminho,

Sendo eu todo espiritual,

Energia enfim liberta

Do simulacro da vida,

Hei de encarar a mim mesmo

No tribunal da consciência

Que chama a cada um de nós

A prestar contas ao Infinito.

E a pergunta que ouvirei

Não será questão de gênero.


Pouco importará

Se fui homem,

Se fui mulher,

Se fui hetero,

Se fui homo,

Se fui trans.


Importa sim

Ter-me tornado homem de bem

A domar minhas más tendências;

Ter sido sábia mulher

Edificando um lar de luz;

Ter visto na heterogeneidade

A riqueza da obra divina;

Ter homogeneizado todos os seres

Em uma grande fraternidade

E ter transformado o meu caminho

Em roteiro do rumo certo.


Só assim poderei prosseguir

Minha jornada

Sabendo a que pertenço:

Sou do gênero divino

De cuja imagem sou semelhança.

Glaucio Cardoso

13/11/2015

quarta-feira, 9 de março de 2022

Memórias de um amante da poesia - 02

 

Primeiros livros

Gosto de lembrar de meus dois primeiros livros de poesia. Quando falo nos meus dois primeiros livros de poesia, estou falando de dois tipos diferentes e ainda assim semelhantes: o primeiro que li e o primeiro que escrevi.


Não sei quando foi que li
Garimpo (1989), de João Prado, mas lembro que foi o primeiro livro só de poemas que tive (os de escola não contam) e que devorei em poucas horas e pelo resto da vida.

Ali descobri que a poesia podia, entre outras coisas, falar do passado e do futuro, mesmo quando parecia pisar o agora. Vi o poeta lembrar da figura de seu pai, falar dos filhos e da amada. E descobri que era possível manter a esperança e o otimismo, mesmo diante de tantas dificuldades, como no poema “Recado”:


Escuta o recado

que eu trago guardado

no fundo do peito:

não busque esperanças

no fundo de um copo

nem ponhas no mundo

profundos defeitos.

[…]

Também entendi que era preciso nos livrar dos preconceitos que insistimos em cultivar, como quando o poeta me levou a ver a favela como espaço de alegria, vida e resistência:


Quando se fala em favela

tem muita gente que pensa

que favela é só muamba,

malandro, escola de samba.

[…]

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender

que a gente que sobe o morro

carregando lata d’água

tem raça pra batucar

na lata, quando descer.

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender

que um barraco de madeira

é bastante pra viver.

Vai doutor, vai na favela,

vai olhar pela janela

de um barraco o que é viver.

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender.

Às vezes sinto que nunca terminei de ler o Garimpo, pois cada novo livro de poemas que inicio a leitura parece existir à sombra dele, como se eu buscasse encontrar em cada um o mesmo encantamento que o livro de João Prado me provocou. Alguns chegam bem perto; outros passam longe; nenhum se lhe iguala ou supera.

Meu outro primeiro livro, Enquanto Clara dormia (2011), nasceu meio que por acaso. Eu estava vivenciando a alegria eufórica do nascimento de minha filha caçula e me peguei organizando poemas que vinha escrevendo a algum tempo.


Por força da profissão, eu tinha consciência de que muitos autores renegam seus livros de estreia após alguns anos; por isso quis fazer algo que pudesse permanecer como algo relevante em minha trajetória na escrita. Descartei muitos poemas e reescrevi outros tantos.

Para evitar a armadilha de que a influência de meu autor predileto se fizesse muito óbvia, evitei aqueles poemas nos quais emulava seu estilo de escrita.

Passados dez anos, noto que nem sempre alcancei meus objetivos neste livro, mas, ainda assim, me orgulho muito do que há nele, como o prefácio assinado pelo meu querido poeta João Prado, ou o poema “E se for…”, que já serviu até para campanhas em defesa da vida, ou ainda “Prece de um filho”, onde me permiti romper com meus próprios paradigmas e escrevi o mais religioso de meus textos ao rogar “Senhor, tende misericórdia das putas…”.

Mas o que mais me encanta neste livro ainda hoje é seu último poema, que escrevi para passar o luto pela partida do meu pai e que foi o poema que fez com que pela primeira vez me chamassem de POETA!

O Mundo e Ele

Ele ficava feliz

E o mundo todo o imitava;

Quando ele acordava bem humorado

O dia amanhecia mais bonito;

Se os pássaros cantavam da manhã até a tarde

Era por ele ter passado o dia assobiando.

Ele respirava fundo num sorriso

E a brisa corria suave e amena.

Quando à tarde ele se espreguiçava com satisfação

As estrelas sabiam que era hora de aparecer.

E se ele ficava pensativo

O mundo se enchia de filosofia.

Um dia ele me olhou nos olhos

E eu me vi todo nesse olhar.

E quando seus olhos se fecharam

A noite se fez completa,

As estrelas rolaram como lágrimas do firmamento,

E as nuvens cobriram todo o céu

E apenas uma janela se abriu

Para o sol iluminar seu leito.

E naqueles olhos fechados,

Sonhadores de sonhos nunca sonhados,

Senti-me um adulto acordando...

Hoje, o sol ainda brilha,

As estrelas aparecem de novo,

Há dias tão belos quanto os de antes

E os pássaros recordam velhas canções

Isso me faz saber mais do que acreditar

Que ele continua a cantar,

A sorrir,

A pensar,

A viver.

Para uns ele era um amigo,

Outros o chamavam de irmão,

De alguém ele foi o filho,

De um outro alguém foi coração.

Mas se de mim quiserem saber

Eu direi simplesmente:

Ele era meu Pai.”


Glaucio Cardoso

Março de 2022