quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Era


Era antigo

Como antigos são os sonhos

Que esqueceram de acordar.

Como as flores

Que secaram

Em um livro

Que ninguém mais folheou.


Era antigo

Como antigos são retratos

Que o tempo desbotou.

Como diários

Esquecidos

Que ninguém mais quer ler.


E era eterno

Como eternas são certas canções,

Como as palavras do profeta,

Como o amor que não se amou.


E era tudo,

E era nada,

E era tanto que acabou,

Tal qual lenda,

Tal qual mito,

Que a memória preservou.


Cavaleiro que galopa

Num corcel de sonho e cor

Assim sou eu e é você:

Personagens de uma história

Que se esquece de acabar.

Glaucio Cardoso

Abril/2018

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Memórias de um amante da poesia – 03

 Poesia: A arte do encontro

Em geral, poetas são vistos como seres solitários e individualistas. Há até quem nos julgue egocêntricos. Há certa verdade nessa visão, pois a poesia é uma arte que permanece, em grande parte, no terreno do sujeito, de onde vem “subjetividade”, empregada para definir a visão de mundo de uma única pessoa.

Vem daí a ideia comumente difundida de que o poeta nasce e escreve imerso na solidão.

Talvez surpreenda ao senso comum a informação de que poetas são também extremamente afeitos à coletividade. Adoram se encontrar para discutir versos, próprios e alheios, ler poemas uns para os outros, comparar textos, etc.

A poesia proporciona sempre os mais inusitados encontros entre poetas e leitores, entre poetas e poetas, entre leitores e leitores.

Quanto aos encontros entre poetas, é sempre um momento agradável, apesar de também marcado por certo nível de conflito, quando aqueles que se dedicam a escrever versos têm a oportunidade de se juntar. Esses encontros não se dão apenas nos eventos como saraus e lançamentos de livros, mas podem acontecer até no acaso de cada dia, num corredor de shopping, num café.

Uma vez, me recordo agora, estava atravessando uma rua na cidade vizinha à minha, voltando nem me lembro de onde, quando ouvi alguém gritando “Salve o poeta de Mesquita!”. Virei-me para o ponto de onde vinha a voz e dei de cara com o sorriso sempre contagiante do poeta Macedo de Moraes (o Griot!), a quem tanto admiro, que me abria os braços. E ali, naquele abraço não programado, em meio aos sons estridentes que caracterizam as nossas cidades, reafirmamos nossa fraternidade de poetas, de amantes dos versos.

Em outras ocasiões pude me encontrar com poetas em eventos, entrevistas e saraus. Alguns membros dessa confraria são muito próximos, outros apenas conhecidos. Há aqueles que lia muito antes de começar a escrever meus próprios versos, como Moduan Matos, Jorge Rocha e João Prado; outros que fui descobrindo em minha formação de poeta, como Alberto Pucheu, Maurício Keller e Merlânio Maia; e aqueles que mais recentemente aportaram em minhas leituras, como Luiz Otávio Oliani, Elciomar Rocha e Alberto Centurião.

A cada encontro, trocamos ideias sobre o que estamos lendo e escrevendo, dividimos sucessos e fracassos, e criamos expectativas quanto aos próximos textos e encontros.

Para um poeta, é sempre gratificante o encontro com seu(s) leitor(es). Saber como um texto que saiu de sua cabeça encontra novos significados para outras pessoas. Descobrir que elas podem admirar um poema que muitas vezes não recebe muita consideração de quem o escreveu.

Mas o encontro entre poetas e leitores apresenta ainda uma dimensão inusitada que é formada por atemporalidade e desterritorialização.

Como leitor de poesia, já pude dialogar com autores que vivem em lugares dos mais distantes. Atualmente tenho acompanhado um poeta português de nome João Negreiros. Seus poemas me chegam do outro lado do oceano. É pouco provável que um dia nos encontremos pessoalmente. Entretanto ele é alguém com quem dialogo, graças aos seus textos nos quais nos encontramos. O mesmo se dá com Bruna Mitrano, poeta do mesmo estado que o meu, mas com quem só me avistei por intermédio de seus poemas viscerais.

Há aqueles poetas que me chegam vindos de outros tempos. García Lorca, Alfonsina Storni, Konstantinos Kaváfis. Apesar de há muito tempo terem deixado seus corpos para trás e ido “estudar a geologia dos campos santos”, estes poetas são meus contemporâneos, são meus amigos.

E agora percebo que nem mesmo a língua poderá ser uma barreira que impeça os encontros poéticos. Sempre, ou quase sempre, podemos contar com as traduções e também, no meu caso, há aqueles poetas que escrevem em inglês e em espanhol e que consigo ler em suas originalidades.

Talvez seja esse o objetivo primordial da poesia: promover encontros; romper barreiras temporais, geográficas, linguísticas; pôr um fim à solidão na qual muitas vezes nos vemos imersos.

A poesia é, assim como a vida, a arte de promover encontros apesar de, e graças à, tantos desencontros.

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

De vez em quando

De vez em quando

mude o caminho.

Vire à esquerda

ao invés da direita

ou vice-versa.

Dê a volta no quarteirão

ao invés de seguir reto,

volte atrás,

vá por uma rua

que não conhece,

você pode descobrir belezas novas,

paisagens inusitadas,

outros rostos alheios

e até outro você.


De vez em quando

mude um hábito.

Troque o ônibus pela calçada,

deixe o carro na garagem,

recupere a bicicleta,

troque o celular pelo livro

e a cara amarrotada

pelo bom dia sorridente.


De vez em quando

mude o cardápio.

Abandone o refrigerante,

beba suco de frutas.

Uma gordurinha cai bem,

mas uma salada não é nada mal

(ponha os dois no mesmo prato).

Só não esqueça que o que entra

não é tão importante quanto

o que sai da tua boca.


De vez em quando

mude o guarda-roupa,

aquela blusa puída

e aquela calça desbotada

já tiveram seus dias de glória,

já nem cabem mais na tua cara

e não há livro novo

com capa de antigamente.


De vez em quando

mude as coisas de lugar.

O sofá, a televisão, o tapete;

mude você de lugar,

podem haver moedas pelos cantos,

tesouros ocultos pedindo encontro.


De vez em quando

mude de canal.


De vez em quando

mude de cidade.


De vez em quando

mude de opinião.


De vez em quando

mude!

Glaucio Cardoso

13/10/22