sábado, 25 de abril de 2020

Qual a cor desse fogo?


Anotações em torno da leitura de Os Transparentes, de Ondjaki

Eu já tinha lido alguns poemas de autor angolano Ondjaki quando recebi o convite
para participar do grupo de leitura promovido pela Stop and Learn, escola de idiomas sediada na cidade de Franca (SP). Nestes tempos de quarentena, quando somos compelidos ao isolamento social e explodem as reuniões on-line, as lives e outras formas tecnológicas de diminuir a sensação de isolamento, os quase 800km que separam Mesquita (RJ) da cidade paulista não me impediram de estar com outros leitores.

Como disse, eu já lera algo da poesia de Ondjaki, o que me fez curioso quanto à sua escrita em prosa. A primeira surpresa: sua prosa é totalmente permeada pela potência do poético.

E que obra! Densa! Inquietante! Atual...

Pelas páginas vemos um desfilar de personagens que se presentificam por alguns momentos para, logo a seguir, se diluírem pelas ruas de Luanda. Seus nomes falam muito mais de ideias e sensações, mais de identidades pessoais que se personificam junto ao coletivo que de meros registros burocráticos: o Carteiro, o Cego, o VendedorDeConchas, JoãoDevagar, MariaComForça, o CamaradaMudo, Odonato...

Ah, Odonato! Talvez a figura central, aquele que ao longo da história representa nosso próprio sentimento de estar no mundo nestes dias amargos que se desenrolam, ao menos aqui no Brasil. É ele o sujeito que vai corporificando a transparência de toda uma nação, de toda uma classe social, aquela que é sempre deixada de fora das celebrações oficiais e que muitas vezes só é lembrada para votos, pagamento de impostos e a procriação que garante a manutenção do status quo de uma minoria composta por políticos profissionais.

- o país dói-me... a guerra, os desentendimentos políticos, todos os nossos desentendimentos, os de dentro e os que são provocados por aqueles que são de fora...

Palavras de um personagem luandense, nascido da cabeça de um autor universal, escritas há quase dez anos e que ecoam um sentimento tão presente, tão contemporâneo, tão nosso enquanto brasileiros.

É essa dor que mais enfatiza a transparência (literal) do personagem. Sua pele vai se tornando translúcida sem que ninguém, nem mesmo ele, chegue a achar isso exatamente inusitado. Como o Gregor Samsa, de A Metamorfose (Kafka), que não se surpreende ao ver-se transformado num inseto enorme, pois era para ele a consequência natural de sua vida e seu trabalho, Odonato demonstra aceitação, e até mesmo uma dose de prazer, em sua nova condição, antecipando que seria ela a responsável por sua libertação final.

Outro personagem de extrema grandeza é AvóKunjikise, que no seu dialeto todo próprio, muitas vezes cifrado, representa o misticismo ancestral, o conhecimento do oculto, capaz de fazer com que suas preces chegassem às almas do outro mundo. Tal mística se reflete também no prédio que verte água em meio a uma cidade onde esta é sempre escassa. Talvez o prédio e a mais velha sejam consciências que se sobrepõem à própria narrativa:

- o tempo é um lugar que também fica parado [...]

Palavras da AvóKunjikise que podem ser lidas em uma dimensão metalinguística. Vivemos um tempo estranho. As narrativas ficcionais parecem rebelar-se contra o ficcional: tudo precisa “fazer sentido” em nome de uma verossimilhança que apenas reflete a perda do estatuto de mito antes concernente ao ato de narrar. Em contrapartida, vemos a mitificação da narrativa que deveria ser o mais realista possível, principalmente quando governantes se apropriam da linguagem para fazer-se passar pelo que não são.

Neste sentido, Os Transparentes representa um esforço de reaproximação do mitológico. Seu começo é enganador: parece que estamos diante de uma escrita convencional, comum, carregada de didatismo.  Linhas adiante, somos lançados em um torvelinho conceitual que, de um lado, não perde a história de vista e, de outro, é um permanente reinventar.

O texto em si é tão vasto que não cabe em uma análise apressada, tão pouco caberá em anotações despretensiosas como estas. É de uma riqueza tão grande que é possível traçar-lhe diálogos com Guimarães Rosa, Clarice Lispector, o já mencionado Kafka, George Orwell e outras artes.

A leitura em grupo nos permite encarar as várias dimensões em que essa história se desdobra, obra múltipla e universal cuja potência nos invade aos poucos e vai nos preenchendo com seu fogo vermelho, um vermelho devagarinho...


Glaucio Cardoso


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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Ainda




Ainda é estranho
Não ter você na sala.
Estranho que sua presença silenciosa
Se tornou essa ausência que grita.
Os dias passam,
As lembranças vêm e vão,
Vêm e vão,
Vêm e em vão
Tento segurar cada uma...
É que tudo em você
Parecia tão eterno
Que me fez esquecer que um dia
A Eternidade te chamaria.
E eu sei,
Pois você ensinou,
Que nenhum adeus
É adeus,
Que tudo é até breve,
E mostrou que o amor
Pode caber inteirinho numa vida,
Num abraço
Ou num aceno.

Glaucio Cardoso
14/03/2020
Para Alaíde Varella (1924-2020)