quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Sopros: um projeto em construção

Sopro II
Vou aonde desejo,
Ilimitado desde o meu gênesis
Pelo sopro/vento Original
De cuja ideia, ou sonho,
Me vem todas as possibilidades
Que ainda desconheço.
Perfectível perfeito,
Posso malbaratar pela infelicidade,
Perder-me em erros
Ou, se for sábio,
Caminhar reto, ainda que trôpego,
Até Cristializar meu eu.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Projeto Sopros

Sopro
A poesia é o espírito!
Verso único de milenares estesias
Donde pulsam ritmadas harmonias
E que nos unem em ligaduras
Envolventes
Que em nossa trilha
Traça o rumo do amanhã
Evidenciando o que não se vê
Para que se o possa sentir...

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Autopsicofonia

O poeta é um cantador,
Canta tão intensamente
Que som chega a supor
Mesmo a pausa mais silente.

E os que ouvem o que ele cala
No tom ausente se detém,
Não por tudo que não fala,
Mas sim pelo que contém.

E assim nos palcos do mundo
Com verso, compasso e refrão,
Traça linhas de baixo profundo
Entre o silêncio e a canção.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Lance de olhar

É um mundo que corre
sob os pés de deuses
que têm olhos de águia
e sorrisos de criança.
Sim, são quase meninos
a rolar este globo
no infinito esmeralda
riscado de branco.
São asas nos pés,
é mágico o passe
da corrida eterna
que parece impossível
a um só tempo invencível,
com fogo nos sopros,
com ar de conquista.
Parece brinquedo
de meninos travessos
com brilhos nos olhos.
Milhões de estrelas explodem
no exato instante
em que a teia-universo
acolhe seus sonhos
em forma de esfera.

(Poema selecionado para a coletânea "Jogando com as palavras", publicada pela Litteris Editora em 2011)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A poesia transcendental de Carlos Drummond de Andrade

O ano de 1930 será marcado pelo lançamento do primeiro livro daquele que seria um dos mais festejados autores brasileiros de todos os tempos. Estamos falando da obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade (1902-87). No octogésimo aniversário de sua publicação, somos levados a (re)visitar suas páginas, seja pelo deleite intelectual oriundo da apreciação da poética do mineiro de Itabira, seja em busca de um algo mais, um poema que nos tenha passado despercebido entre inúmeras outras peças literárias de igual valor histórico e/ou literário.
            Nesta busca pelo novo tornado clássico deparo-me com “Balada do amor através das idades”[1]:
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles
espirituoso e devasso,
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.
No momento mesmo em que o releio sinto uma irresistível necessidade de dividi-lo com outros, de pensá-lo, de analisá-lo, para de alguma forma torná-lo um pouco minha propriedade. Chego não a uma, mas a duas possibilidades de leitura: a Metalinguística e a Metafísica.
Convém avisar que ambas as vias de leitura apresentadas a seguir mereceriam maiores considerações para que fossem desenvolvidas de forma adequada. Por me parecer a menos comum, opto pelo desenvolvimento da segunda sem pretendê-la absoluta, pois como assinala Luiz Costa Lima[2] “A obrigação do crítico está toda em não converter (...) a leitura possível que extrai e escolhe entre outras tantas, em arbitrariedade”.
            A Leitura Metalinguística toma como base a menção, no penúltimo verso do poema, ao mundo do cinema e lendo-o como uma referência papel formador da própria arte na vida do eu lírico que através dos anos de sua vida, desde a infância até a maturidade, tem o sentimento amoroso compreendido pela ótica correspondente ao tipo de filme que mais agradaria a este eu lírico de acordo com seu grau de maturidade, elemento determinante na escolha e na apreciação da arte. A palavra idade está aqui empregada em seu sentido cronológico referente aos anos que compõem a vida de um indivíduo. É uma leitura, aliás, muito interessante por demonstrar o quanto o eu subjetivo do ser humano é afetado pela arte, cuja influência molda-lhe inclusive a forma de sentir e de representar-se no mundo, representação esta que passa pela imagem mental que cada indivíduo faz de si mesmo e que busca impor ao mundo com a mesma ênfase que o personagem de Borges no conto “Ruínas Circulares”.
            A Leitura Metafísica, subjacente ao texto, não exclui a Leitura Metalingüística, ao contrário: amplia-a de tal forma que pode ser tomada como ponto de partida e chegada da anterior, ou melhor dizendo, como recurso temático que fundamenta a metáfora da relação vida e arte utilizando a ideia da reencarnação como base deste recurso temático.
A reencarnação faz parte dos conceitos de diversos segmentos espiritualistas, sendo o Espiritismo o mais difundido dentre eles. De acordo com o conceito espírita, o espírito vive diversas vidas em uma incessante marcha de progresso. Nesse processo evolutivo, a afinidade entre espíritos faz com que eles se busquem constantemente, fortalecendo laços que os unem cada vez mais, cometendo erros e acertos, aprendendo e ensinando mutuamente. Desta forma, ainda de acordo com o Espiritismo, as almas em evolução conquistam vitórias e recebem novas oportunidades de acordo com seu merecimento. Parece-me ser esta a ideia de reencarnação que perpassa o texto de Drummond, i.e., o poeta utilizou o conceito reencarnacionista nos moldes da Doutrina Espírita para a escrita do poema em questão.
Esta leitura de caráter transcendental está longe de ser nova e não será este o primeiro texto a apontar tal caráter do poema de Drummond. De fato, a “Balada do amor através das idades” já havia sido incluída na antologia Temas espíritas na poesia brasileira, de Clóvis Ramos, que apenas lhe assinalou a temática reencarnacionista. Longe de menosprezar o trabalho do antologista, arrisco-me a dizer que seu “Sem comentários”[3] que antecede a transcrição do poema representa uma visão por demais simplista do mesmo determinada, talvez, pela quantidade de páginas que a antologia em questão deveria ter. Tomando-o como ponto de partida, proponho-me a atualizar e ampliar sua leitura.
            Começando pelo título já seremos capazes de perceber a perspicácia de Drummond na escolha e no trabalho com as palavras. Uma balada é um tipo de composição poética cuja principal característica é a narrativa de lendas. Desta forma, o poeta itabirano confere a seu texto, logo de início, um caráter lendário, antigo, que se perde nas eras temporais, cujo sinônimo idade também comparece no título.
            É, portanto, a partir deste título, e não do desfecho, que se poderá ler o poema sob a ótica do transcendental. O título situa o poema entre o lendário e o mítico para narrar os sucessivos encontros e desencontros de um casal que se busca vida(s) afora, sem poder, em sucessivas ocasiões, realmente gozar este amor cultivado há tanto tempo e de maneiras tão inusitadas. Não se tome o caráter lendário e mítico do poema de Drummond como um afastamento da realidade; ao contrário, o poeta utiliza a linguagem mítica para referendar a própria realidade a partir da associação do imaginário a uma consciência realista da mesma maneira que, em outros poemas, efetua uma “transposição ao imaginário de uma pátria historicizada[4]. Portanto, a ideia da reencarnação é tomada pelo eu lírico do poema em questão como um elemento realístico; não um mito provável, mas sim um fato palpável.
            Na primeira estrofe vemos o casal em um de seus encontros em plena batalha de Tróia, quando se encontram em lados opostos da contenda. Não se pode afirmar ser este o primeiro de seus encontros, uma vez que o texto afirma vir este amor “de tempos imemoriais”, no entanto, situando o primeiro encontro narrado em meio à lendária guerra entre troianos e gregos, não poderia ter sido mais ilustrativa do caráter do próprio poema. Basta atentarmos para o fato de que a Guerra de Tróia Histórica não tem um décimo do “prestígio” da Guerra de Tróia Lendária (ou Literária), mas que serve-lhe de modelo e referência para uma batalha Lendária/Literária que tem profunda influência na mentalidade humana. É como se o poema nos dissesse “Pouco importa se esta história aconteceu ou não, o que realmente interessa é como ela se presta à ilustração de uma realidade que nos escapa”.
            É esta primeira estrofe que apresenta uma das etapas iniciais do sentimento amoroso sob uma conjugação inovadora (Eu te gosto, você me gosta) apontando para o princípio de simpatia que rege as relações amorosas e que muitas vezes apresenta-se de maneira inusitada, no caso, entre dois inimigos. Já nesta primeira estrofe será curioso o fato de os personagens anônimos dissolverem-se em acontecimentos famosos, dissolução esta ironicamente retratada no fato de que a mulher em questão é troiana “mas não Helena”. A ironia representa em Drummond o modo inicial de contato com a realidade, segundo Costa Lima que ainda assinala a multiplicidade da ironia no livro de estreia do poeta mineiro: “Em Alguma poesia, entre poemas de circunstância e poemas-piada, entre ingênua e complacente, a ironia já aparece habilitada a liberar o poeta dos mitos que praticavam ou a que tendiam os contemporâneos”. (1968: 138)
            Na sequência temos outra referência histórica bem definida: a perseguição e morte de cristãos pelo regime romano. Neste trecho, Drummond confere ao amor um caráter de sacrifício na imagem do soldado que dá a própria vida por uma inimiga sem um porquê definido para ambos a não ser o impulso de um momento.
            A terceira estrofe traz os dois amantes mais uma vez em lados opostos, mas buscando-se com grande ardor. Neste momento, o eu lírico mostra-se incapaz de compreender o amor como doação. O que na vida anterior foi doação de vida torna-se agora o amor paixão, aquele que escraviza, que cobra, que exige obediência. Ele mostra ali a perda do amor sempre que os amantes não se mostram maduros o suficiente para lidar com o sentimento amoroso de forma equilibrada. Todos perdem. Perde-se o amor. Perde-se a vida.
            Convém aqui um parênteses: se o princípio reencarnacionista conforme ensinado pelo Espiritismo prevê a evolução incessante, não seria de estranhar que o eu lírico que se sacrificara anteriormente pela amada apareça agora com um sentimento tão desequilibrado? Duas hipóteses se nos apresentam: 1) o eu lírico pode estar apresentando-se no singular por um processo de fusão das vozes, representando assim dois eus líricos que se confundem um no outro, ou 2) o sacrifício anterior, sendo oriundo de um impulso, seria demonstração não do desprendimento do amor, mas da paixão arrebatada. Sendo um, sendo outro, ambas as visões nos servem.
            A estrofe seguinte traz o início da maturidade amorosa, maturidade esta que traz os “tempos mais amenos” da relação. É claro que esta amenidade não é completa, pois ainda aqui temos a dicotomia entre os gênios dos amantes: de um lado o homem regido pelo sensualismo que o leva à corrupção de suas energias genésicas, muito embora seja inteligente e bem humorado; de outro vemos a mulher que já evoluiu em seu sentimento, a tal ponto que busca a sublimação por meio da religião, embora tal sublimação surja mais como elemento externo do que fruto da convicção. A atração dos dois ainda é forte e será aparentemente obliterada pela marcha incessante da história na qual a guilhotina (uma possível referência à Revolução Francesa) surge como um símbolo para o desencontro que parece perseguir o casal.
            Ao chegarmos à última estrofe já podemos afirmar que o poema de Drummond demonstra o conhecimento por parte do autor a respeito dos conceitos espíritas, os quais utiliza de forma brilhante na construção de seu texto. Após tantas vidas e desencontros, os amantes recebem nova oportunidade de se encontrarem e, desta vez, conseguem atingir certo equilíbrio. A afinidade entre os dois fica patente pelos gostos em comum que não excluem a individualidade de ambos. Mesmo nesta vida surge a dificuldade para a concretização amorosa, configurada na imagem do pai da moça, símbolo de coerção que não será capaz de impedir que os amantes deem um passo decisivo em seu sentimento: o casamento, que aqui surge como a completude de séculos de busca um pelo outro.
            E voltamos assim ao início de nossa análise. O eu lírico se afirma um herói cinematográfico, pois tem a consciência da verdadeira epopeia que atravessou no decorrer de diversas encarnações, vencendo seus próprios impulsos até alcançar o grau evolutivo que lhe possibilita finalmente viver aquele amor tão sonhado que passou do desejo à compreensão, da violência ao carinho, do ideal ao real.
            O poema de Drummond é um exemplo do que já havia sido assinalado em Obras póstumas[5]:
Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os gêneros as novas idéias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita!
[...]
Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efêmeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.
             Não se trata aqui de levantar hipóteses a respeito da opção religiosa de Carlos Drummond de Andrade, nem isto é relevante para nossa análise, mas sim de demonstrar o quanto o Espiritismo oferece à humanidade em termos temáticos e ideológicos, apresentando recursos que podem ser utilizados por todos, sejam eles espíritas, simpatizantes ou agnósticos e que pouco importa o rótulo que se lhes dê, pois o mais importante, a mensagem, está lá.
            Sempre pensei em Drummond como um poeta transcendental por ser o autor de uma poética que ultrapassa o tempo e o espaço. Agora vejo-o também como um poeta transcendentalista capaz de penetrar surdamente no reino das palavras e abrir multidões de portas e caminhos respondendo afirmativamente à pergunta: “Trouxes-te a chave?”.


[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 10 livros de poesia. Introdução de Antônio Houaiss. 9 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, pág. 22.
[2] LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pág.136-7.
[3] RAMOS, Clóvis. Temas espíritas na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1969, pág. 199.
[4] LIMA, Luiz Costa. Op cit. Pág. 138.
[5]KARDEC, Allan. Obras Póstumas (Euvres Posthumes). Trad. De Guillon Ribeiro. 22 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O olhar de Mariah

Para Lia
Algodão doce navegando
em gelatina azul;
borboletas trazendo música
em forma de corações;
o mundo cabe numa bolha de sabão
que eu sopro com ar hortelanado;
e eu vou pulando de poça em poça
pra pisar em cada estrela que há no céu.
Não desprezo o passado
nem ignoro o futuro,
mas vivo o presente como
se não houvesse antes e depois.
Sou amiga dos pássaros
que dançam para mim.
Os cachorrinhos me dão bom dia
e as plantinhas me jogam beijos.
Toda a magia que houver
há de ser para mim,
criança eterna que desistiu de ser adulto.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Eu aqui

Vejo o que ninguém mais vê,
Escuto as vozes do astral,
Aqui me coloco à mercê
Do amor universal.

As minhas dúvidas me assaltam,
Mas meu temor me faz pensar,
Me faz correr para alcançar
As virtudes que me faltam.

Mas se o errar me mete medo
Por não ver em mim dignidade,
Pegarei na enxada desde cedo
À serviço da Verdade.

Não é dom,
Nem é recompensa,
É uma doação,
É seara imensa,
É ajudar o irmão
É irmanar em ti
E com o que pedi
Ser um homem bom.

E lá, no ilusório fim
Quero a consciência feliz
Pois está escrito em mim
O que o amor do Pai me diz.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Naturalismo transcendental dos romances espíritas

            A questão do lugar da literatura espírita no contexto literário canônico é tema que ocupa minhas meditações já de algum tempo, principalmente devido ao fato de parecer-me que as análises literárias de obras espíritas têm sido feitas principalmente por pessoas que muito admiram a produção de nossos autores encarnados e desencarnados, mas que produzem avaliações superficiais, escrevendo verdadeiros panegíricos a autores e textos sem aprofundar-se em questões consideradas fundamentais dentro dos estudos literários como estética, estilística e autoria apenas para ficar naqueles mais comuns.
            Tal superficialidade talvez se explique pelo fato de que tais análises são feitas na maioria dos casos por pessoas que não possuem a formação literária necessária para aprofundar certas questões. Não estou dizendo que um médico, um advogado, ou mesmo um padeiro não possam realizar belas e úteis análises textuais, em absoluto. Mas da mesma maneira que um advogado terá problemas para fazer um pão e um médico não se defenderia de maneira eficaz diante de um júri, um estudo literário exige o conhecimento de certos conceitos que não podem ser adquiridos apenas pela leitura de verbetes enciclopédicos ou por uma visão superficial do texto literário em si. Há alguns conceitos de teoria literária que escapam ao leigo, por melhor leitor que ele o seja.
            Sinto falta de que nossa produção textual seja estudada por pessoas com formação em letras, o que tem representado mesmo um empecilho para sua aceitação fora das fileiras espíritas. Proponho-me, portanto, a buscar a problematização da chamada Literatura Espírita tendo como base os conceitos científicos da teoria literária, objetivando assim prover outros pesquisadores mais competentes de alguns pontos de partida para suas próprias elucubrações.
            No presente texto, darei vazão a algumas ideias a respeito dos romances espíritas. O tema é vasto e o espaço é curto, o que talvez nos obrigue a conceituações de ordem geral.
            O romance liga-se ao gênero narrativo ou épico, sendo uma narrativa em prosa como também o são a epopeia, a novela, o conto, a crônica, a anedota, a fábula, o apólogo e a parábola¹. A palavra romance² designa toda narrativa longa. O grande problema é que não há um consenso do que seja exatamente longa em termos de narrativa, o que muitas vezes faz com que só se possa distinguir bem o romance do conto, enquanto que sua confusão com a novela é por demais problemática, não nos cabendo aqui tentar desfazê-la.
            O surgimento deste tipo de texto literário tem raízes na Idade Média, ganhando pouco a pouco contornos mais definidos, nas palavras de Vitor Manuel³:
Alargando continuamente o domínio de sua temática, interessando-se pela psicologia, pelos conflitos sociais e políticos, ensaiando constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se, no decorrer dos últimos séculos, mas sobretudo a partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. De mera narrativa de entretenimento, sem grandes ambições, o romance volveu-se em estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexão filosófica, em reportagem, em testemunho polêmico, etc. (1982: 639)
            A importância do romance como veículo literário de experimentações estilísticas e temáticas é, portanto, um fenômeno historicamente identificável e, ao mesmo tempo, responsável por sua grande aceitação em todas as camadas da sociedade.
            Temática e formalmente, o romance se adapta a praticamente tudo. Desde histórias água com açúcar até retratos da alma humana, de narrativas convencionais e lineares a textos fragmentários e subversivos. Não é por acaso que os romances espíritas têm representado o principal veículo de divulgação das ideias espíritas. Desde Giovana, de Léon Denis, passando pelas obras assinadas por autores como Emmanuel, André Luiz, Fernando do Ó, Wilson Frugillo Jr., até obras contemporâneas como Nova Aurora, de Rogério Felisbino da Silva, ou a produção psicográfica em geral, o romance espírita vem se mostrando uma inesgotável fonte de ensinamento doutrinário, podendo mesmo ser apontado como o grande responsável pelo surgimento de novos adeptos do Espiritismo, numa clara demonstração da força que tem a arte na propagação de ideias.
            Mas como poderemos estudar os romances espíritas diante de sua produtividade, suas manifestações e temáticas tão diversas? Proponho-me a algumas classificações que em muito podem auxiliar o pesquisador ou o leitor.
            Podemos dividir a produção romanesca espírita em três gêneros:
·         Romances Mediúnicos – nos quais há a intervenção direta de um espírito desencarnado; a este gênero pertencem os romances psicografados.
·         Romances Inspirados – a intervenção do espírito desencarnado não é direta, sendo mais uma sugestão.
·         Romances Anímicos – textos escritos apenas pelo encarnado, sem que a influência dos espíritos seja sensível4.
Os três gêneros apresentam duas vertentes narrativas:
·         Vertente Factual: relatos de fatos ocorridos, i.e., reais.
·         Vertente Ficcional: histórias inventadas pelo autor.

            Um simples olhar sobre os romances espíritas nos permite verificar alguns fatos:
1º.    A quase totalidade dos Romances Mediúnicos propõe-se a narrar fatos reais vivenciados pelo autor espiritual ou colhidos nos arquivos da espiritualidade.
2º.    Os Romances Inspirados têm suas narrativas divididas nas duas vertentes, embora com maior tendência à vertente factual.
3º.    Já os Romances Anímicos costumam apresentar quase que predominantemente a vertente ficcional, embora com algumas ocorrências de narrativas escritas a partir de pesquisas históricas, como biografias e outros relatos escritos a partir de registros factuais.
4º.    Independente do gênero ou vertente no qual o romance se enquadre é possível observar que as narrativas costumam apresentar certo didatismo que muitas vezes compromete o andamento da própria narrativa bem como sua qualidade literária.
5º.    Tal didatismo aproxima os romances espíritas da proposta naturalista do romance de tese.
Sobre estes dois últimos itens da presente exposição é que se fundamenta grande parte de minhas observações a respeito da produção literária espírita. Há dois conceitos interligados dos quais farei breve, mas imprescindível, explicação: Naturalismo e Romance de Tese.
O Naturalismo foi um movimento artístico da segunda metade do século XIX que tinha como características básicas o cientificismo e o empirismo. Nas palavras de Arnold Hauser5:
O naturalismo deriva quase todos os seus critérios de probabilidade do empirismo das ciências naturais. Baseia seu conceito de verdade psicológica do princípio de causalidade, o desenvolvimento apropriado da trama na eliminação do acaso e dos milagres, sua descrição do ambiente na ideia de que todo e qualquer fenômeno natural tem lugar numa interminável cadeia de condições e motivos, sua utilização de detalhes característicos no método de observação científica (...).
O princípio de causalidade e a eliminação do acaso são traduzidos literariamente pelo que se chama determinismo, i.e., o comportamento humano (no caso, dos personagens) é determinado, regido por fatores sociais, biológicos, fisiológicos, étnicos, etc. A literatura Naturalista se desenvolverá principalmente nos chamados romances de tese, textos literários que procuram provar uma ideia substituindo o discurso científico pelo discurso narrativo, ficcional, permeado de uma ideologia cientificista.
É neste ponto que podemos classificar melhor os romances espíritas de um modo geral. No já citado Giovana, por exemplo, o autor teve o claro intuito de narrar uma história de amor que mais não fazia do que ser um exemplo de como a reencarnação é capaz de reunir seres que se querem bem. Sendo o Espiritismo uma ciência, nada mais óbvio que sua filiação artística a um movimento estético marcado pela objetividade e pelo cientificismo, o que faz com que todos os romances espíritas possam ser enquadrados como romances de tese na tradição naturalista.
O determinismo, talvez o lado mais polêmico do naturalismo, assume uma nova face nos romances espíritas: o livre arbítrio aliado à lei de causa e efeito como sendo os verdadeiros elementos determinantes do comportamento humano e de seu destino, i.e., do que se passará com o espírito em decorrência de suas escolhas.
Outro fator relevante dos romances espíritas é a maneira como sua estrutura se apresenta.
O significado do texto narrativo literário (sua diegese) abrange, no caso dos romances, personagens, eventos, objetos, tempo e espaço. De acordo com a maneira como tal diegese se apresentar poderemos ter um romance fechado ou um romance aberto.
No romance fechado sua diegese é constituída por princípio, meio e fim, o narrador introduz os personagens de maneira metódica, seus ambientes. Tudo na mais perfeita ordem. Já o romance aberto não apresenta uma diegese com princípio, meio e fim bem definidos, acontecimentos e personagens sucedem-se, interpenetram-se ou condicionam-se mutuamente sem que venham a fazer parte de uma ação única e que os englobe. Nas palavras de Vitor Manuel:
O termo de um romance aberto contrasta profundamente com o termo de um romance fechado: no caso deste, o leitor fica a conhecer a sorte final de todas as personagens e as derradeiras consequências da diegese romanesca; no caso do romance aberto, pelo contrário, o autor não elucida os seus leitores acerca do destino definitivo das personagens ou acerca do epílogo da diegese. (1982: 696)
Lendo os romances espíritas disponíveis, podemos dizer que alguns se enquadram na categoria de fechados: têm sua ação desenvolvida no presente narrativo, a menção ao passado, incluindo-se encarnações anteriores, é feita as mais das vezes apenas para justificar este ou aquele ponto dos acontecimentos. O final destas narrativas apresenta os personagens em novas encarnações ou se preparando para estas, cujo roteiro é esclarecido ao leitor.
Temos também romances espíritas abertos: a ação inicia-se no presente narrativo, é interrompida para um flash-back que esclarece alguns pontos e deixa outros em aberto, e ao final sabe-se apenas que aquela história manterá desdobramentos futuros, porém incertos, não cabendo ao narrador o papel de dá-los a saber ao leitor. São bem raros.
Mais raros ainda, porém detectáveis, são os romances espíritas que constituem uma terceira diegese: os fechados-abertos. Mesclando características das duas diegeses já mencionadas, surpreendem os leitores com narrativas que deixam alguns pontos bem esclarecidos enquanto outros ficam em aberto.
Eis que estamos nos aproximando do final destas linhas. Era minha intenção inicial apresentar uma lista para cada uma das categorias mencionadas aqui, mas não o farei. Acredito ser mais interessante que o leitor possa ele mesmo buscar classificar o romance espírita que está lendo com base nos seguintes pontos:
1º.    Os romances espíritas podem ser divididos em três gêneros: Mediúnicos, Inspirados e Anímicos.
2º.    Cada um destes gêneros pode estar vinculado a uma de duas vertentes: Factual ou Ficcional.
3º.    Independente do gênero ou da vertente a que se ligue a narrativa, esta pode apresentar-se em uma de três diegeses do romance: fechado, aberto ou fechado-aberto.
Sendo o romance uma das categorias favoritas dos leitores acredito ser útil e necessária uma compreensão mais abrangente de seus aspectos constituintes e espero ter colaborado para tanto.
Glaucio Cardoso
REFERÊNCIAS E NOTAS
1 - TAVARES, Hênio. Teoria literária. 6ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978, p. 121.
 2 - Vale ressaltar que a palavra romance torna-se de uso corrente principalmente em português e francês, enquanto que em inglês o que chamamos romance é denominado novel.
3 - AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Vol. I. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 1982.
4 - Sabemos por intermédio de Kardec e André Luiz que o contato entre encarnados e desencarnados é constante e ininterrupto. A classificação proposta não exclui de maneira alguma esse conceito, apenas nos serve para diferençar os textos cuja influência espiritual é clara dos que são fruto do talento do espírito encarnado.
5 - HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura (Sozialgeschichte der kunst und literatur). Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 791.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aequalitas¹

A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade;
eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim.
John Donne
(1572 – 1631)
Poeta Inglês
Hoje não cantarei
o sacrifício dos mártires
não lamentarei
o holocausto dos inocentes
também os desesperados
perseguidos e humilhados
não receberão
as gotas de meu pranto
Antes que me acusem
que me apontem insensível
que me olhem com desprezo
eu explico para quem
minhas lágrimas correm
Eu choro os odiados do mundo
pois por eles não há quem reze
e enquanto muitos lhes desejam os infernos
peço a Deus que os receba
guiando suas consciências
ao reconhecimento de seus atos
Enquanto a turba celebra
a morte de assassinos
elevo uma prece em seus favores
As manchas de um crime
não se lavam com um outro
que tinge as mãos “justiceiras”
No momento derradeiro
um homem é só um homem
e não há diferenças
Por isso eu oro
por aqueles por quem não oram
pois reconheço em sua humanidade
a mesma que existe em mim
E quem sabe
um dia
alguém
me há de lembrar

20/10/11
Dia em que o ditador líbio Muamar Kadafi foi morto. Deus o ampare.


[1] Igualdade (latim)

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

E se for...

            A quem vai chegar
E se for nosso filho...
Terá os olhos de mim?
Correrá pés no chão,
Peito nu, riso ao vento?
Rolará gudes infinitas,
Empinará papagaiopipandorga lá no azul?

E se for nossa filha...
O batom da mãe em sua face?
Vestirá as bonecas filhinhas?
Embalará sonhos, pães doces, picolés?
Da mais velha será o espelhinho?

E se for menino...
Brincará na chuva,
Roubará mil mangas,
Sonhará estrelas.

E se for menina...
Bordará a lua,
Colherá mil flores,
Moldará as nuvens.

E se for rapaz,
Cachos longos,
Olhar claro.
E se for moça,
Dedos finos,
Voz presente.

E se for homem
Educação, cortesia, cavalheiro
Encantará as damas,
Fará admiração nos iguais.
E se for mulher
Sabedoria, força, independência
Conquistando reis
E sendo exemplo alheio.

E se for tempo
Saberá escolher caminho,
Espalhar cultura,
Encontrar mil cores,
Semear a paz.

E se for único,
E se for última,
E se for tudo,
Que sejamos nós orgulho,
Que sejamos nós conselho,
Que sejamos nós amparo,
Que sejamos quatro braços
A formar um só abraço.

E se for só isso,
Será tudo que sonhamos
E mais do que pedimos.