Livros intermináveis
“Acabar
um bom livro é como deixar um bom amigo”.
William
Feather (1889-1981)
Há algo de estranho com livros de
poesia.
Quando alguém fala de um romance,
por exemplo, e diz que “não conseguiu parar de ler”, fica
subentendido que a pessoa leu o livro quase que de uma sentada só.
Vem à mente a imagem de um leitor compenetrado na leitura de uma
história, vivendo ao longo de um dia inteiro (ou talvez dois) as
vidas daqueles personagens com os quais se identificou, sofrendo com
suas tristezas e vibrando com seus sucessos, desejando ardentemente
que o vilão receba seu castigo ao final da história.
O mesmo não se dá com livros de
poesia.
A frase “não consegui parar de
ler”, aplicada a um livro de poemas tem um sentido bem diferente.
Ao contrário de romances, contos
e outros tipos de narrativa, a poesia não nos exige pressa de
acabar, na realidade a poesia representa uma traição à rotina da
vida cotidiana, sempre corrida, sempre cobrando das pessoas que não
se demorem demais, pois tempo é dinheiro, comida é dinheiro, amor
é dinheiro, vida é dinheiro, tudo resumido a um eterno aqui e para
ontem que nos assola. A poesia rompe com tal lógica.
É claro que podemos imaginar um
leitor devorando páginas e mais páginas de um livro de poemas,
principalmente quando este o empolga, com uma celeridade absoluta.
Entretanto, mesmo quando o leitor percorre as páginas de um livro de
versos com olhos famintos, esta leitura será repleta de pausas e
silêncios, ou não será leitura.
Há poemas e poetas que nos impõem
longos momentos de análise, de espanto, de choque. São momentos nos
quais muitas vezes nos vemos obrigados a largar o livro e ir fazer
algo mais prosaico como assistir uma série, lavar a louça, cuidar
dos cachorros ou simplesmente ficar sentando olhando para algum ponto
situado entre nós e o infinito. São momentos em que sentimos a
necessidade de voltar para nós mesmos, para aquele lugar de onde o
poema nos retirou, nos deixando em estado de suspensão.
Quando somos arrebatados por um
livro de poemas, não conseguimos parar de lê-lo, mesmo quando
saímos para o trabalho e deixamos o livro em cima da mesa, ou no
braço do sofá. O livro ficou e também nos acompanha, pois a
leitura de um poema não termina no último verso, assim como a
leitura de um livro não se acaba na última página.
Atualmente isso tem me acontecido
com certa frequência. No momento em que escrevo estas linhas, não
consegui parar de ler pelo menos dois livros de poemas. Um é o
recentemente lançado É
chegado o tempo de voltar a superfície,
de Alberto Pucheu, do qual já li metade dos poemas que o compõem. A
cada texto lido, sinto uma irresistível necessidade de parar e olhar
ao redor, de soltar o livro e o manter junto a mim, de fechar as
páginas depois de cada “só mais um e chega por hoje”.
Outro
livro que não consigo parar de ler é Metade
cara, metade máscara,
poesia indígena de Eliane Potiguara que me retirou completamente de
minha zona de conforto há mais de um ano, desde que cheguei à sua
última página. Por vezes penso que o que mais fiz nos últimos doze
meses foi revisitar cada um de seus versos tentando reencontrar uma
parte de mim que sequer sabia perdida.
Talvez
este seja o verdadeiro feitiço que a poesia lança em cada um de
nós, essa impossibilidade de parar de ler os poemas. Talvez esta
impossibilidade seja fruto do fato pouco comentado de que os poemas
também não param de nos ler.
Glaucio
Cardoso
30/11/2022