segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Escritos na pandemia

 (Texto apresentado na IV Semana Acadêmica de Pesquisa e Produção Literária de Graduação em Letras -  Conversas da pandemia - Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Minha cordiais saudações aos participantes da IV SAPPLI. Creio que não há nada mais louvável nestes tempos de inquietude nos quais nos encontramos que o gesto de resistência que ora estabelecemos, i. é, o de nos reunirmos, ainda que virtualmente, para a troca e construção de conhecimentos.

            Tendo sido informado de que no tempo que me foi concedido eu deveria falar de meu processo de escrita, algo que honestamente nunca fiz ao longo dos anos a que tenho me dedicado à poesia, acostumado a falar apenas dos versos alheios, sinto que devo fazer o alerta de que não tenho a pretensão de fornecer uma explicação excessivamente intelectual a respeito de como escrevo, pois sempre defendi que o autor é talvez o menos indicado a falar sobre seus textos. O risco narcisista é por demais tentador, da mesma maneira que ao falar sobre seu fazer literário, o autor se presta a fazer novas criações literárias.

            Quando falamos em criação poética, apesar de todo o nosso empenho teórico, é comum cedermos à ideia romantizada de “inspiração”, que põe os poetas como bafejados pelo sopro das musas ou protegidos pelas asas dos anjos.

            Que me recorde, nunca acreditei muito no conceito de inspiração como algo que nos venha de fora, sob influxo de uma consciência exterior e estranha à minha própria. Entretanto, compreendo que, para os poetas em geral, sempre existe a possibilidade de que o seu entorno lhes instrumentalize de temáticas que desembocam em poemas. Talvez o poeta não seja um mero intermediário entre realidades, mas certamente é um observador das realidades, as que conhece, as que intui e as que imagina. Essas realidades chegam ao poeta e o provocam a escrever e dar sua própria voz às vozes que capta.

Assim, o que é comumente chamado de “inspiração” eu sou levado a denominar “provocação”. Escrevo quando me sinto provocado a fazê-lo e escrevo poemas quando a provocação é tamanha que não me permite outra forma de discurso que o poético, a mais completa expressão que tenho encontrado.

Parafraseando Maiakovski, se a poesia puder servir de martelo para forjar o mundo, então eu direi que minha poesia será sempre a minha resposta às provocações de um mundo que precisa ser questionado, problematizado e assim dobrado aos golpes dos versos que insisto em brandir.

Os três poemas que trago hoje foram escritos entre abril e maio deste ano e representam distintas respostas para distintas provocações inseridas dentro da grande provocação que a pandemia nos trouxe. Serão lidos e comentados na ordem em que foram concluídos.

Cansaço

(08/04/2020)

É duro esse constante reinventar,

Esse recriar dia-a-dia,

Esse resistir pela mudança eterna.

É que tudo em torno

Convida ao estagnar,

Ao permanente,

Ao acovardar-se.

E nesses dias

De portas cerradas,

De sonhos adormecidos,

De medo e angústia,

Em que o simples abrir

De uma janela

Nos põe em vista do mundo,

A dureza da permanência

Nos choca,

E chocados,

Espantados,

Assombrados,

Ainda assim nos levantamos

Uma vez mais

E, punho erguido,

Bradamos:

NÃO!

 

O poema “Cansaço”, como bem diz o título, surgiu a partir da sensação de esmagamento provocada por aquela que considero a face mais perigosa dessa pandemia: a guerra das narrativas.

De um lado vimos o esforço da ciência em indicar os cuidados necessários à prevenção contra um vírus que se propaga a tal velocidade que poderia colapsar os serviços de saúde em pouquíssimo tempo. Até mesmo a mídia, que sempre mereceu minha desconfiança, atuou de forma insistente na divulgação de informações.

Do outro lado, a irresponsabilidade de um necrogoverno que minimizou o quanto pôde a gravidade da situação, utilizando-se da mesma em sua campanha permanente contra tudo o que representa, em sua lógica distorcida, uma ameaça à sua dinastia de hipócritas.

Daí o cansaço de ter estar constantemente explicando o óbvio. Daí a escolha por terminar o poema com um brado de NÃO, em caixa alta e seguido de exclamação. Este brado é uma afirmação de persistência, uma forma de estender a mão a todos que ainda se erguem contra esse adorador da morte e seu rebanho de insensatos.

O próximo poema soará um pouco mais brando.

Fragmento encontrado em 3076

(13/05/2020)

E quando tudo isso for passado,

Haveremos de olhar

Mais nos olhos que nas telas.

Buscaremos mais abraços verdadeiros,

Sorriremos mais francamente,

E aprenderemos a beleza

De estarmos realmente lado a lado,

Assim, sem nem precisar dizer nada,

Mas sem nos distrair na virtualidade.

Quando tudo isso for passado,

Acho que o mundo estará

Um pouco mais silêncio,

Muitos rostos não serão mais,

E talvez nem o meu ainda seja.

Entenderemos finalmente

Que ausências não se substituem,

Mesmo quando as presenças se sucedem.

Quando tudo isso for passado,

Talvez entendamos

Que tudo que passou

Não passou de presente,

Chance, oportunidade,

Chamado...

Quando tudo isso for passado,

O futuro, que nunca chega,

Não será mais utopia

Ou nostalgia em construção.

Quando tudo isso for passado,

Que sejamos todos gratos

Por tudo que temos passado.

 

Diferente de “Cansaço”, que agora me dou conta direcionar-se ao presente, “Fragmento encontrado em 3076” surgiu com o claro intuito de representar tanto uma projeção ao futuro quanto um olhar para o passado no qual um dia nosso presente se tornará.

Talvez seja um poema que soe piegas para alguns, mas sou confessadamente um otimista, que teima em crer na humanidade, que preciso, como os taciturnos companheiros do poema de Drummond, nutrir “grandes esperanças” de que as gerações futuras caminharão de “mãos dadas” graças ao aprendizado obtido de nossos tropeções.

Faço aqui uma nota sobre esse poema: o músico curitibano Lucas da Paz compôs uma breve melodia para o mesmo, intitulada “Secreto Saber”, e que acompanha uma experimentação audiovisual que publiquei no youtube. Juntos, a música e o poema, me parecem adquirir outras dimensões de significados que nem o músico nem o poeta pudemos prever.

Passemos ao último dos três poemas, intitulado “Versos na quarentena”, que apresenta uma diferença significativa em relação aos dois anteriores.

Versos na quarentena

(15/05/2020)

Tenho inveja dos poetas

Que no isolamento encontram

Motivação para seus versos.

É que a solidão, dizem eles,

Trouxe o silêncio,

Trouxe a retidão,

A quietude que inspira.

E para mim, não...

É que poesia sempre foi

Minha forma de estar em contato,                            

De comunicar,

De “arreunir”,

De dialogar.

Poesia sempre foi

Meu maior estar no mundo,

Por isso escrevo pouco nestes dias.

 

E agora repenso o que disse no início...

Tenho ainda um pouco

De inveja dos poetas

Que no isolamento encontram

Motivação para seus versos...

Mas, acima de tudo,

Também tenho pena.

 

Enquanto naqueles procurei dirigir-me a possíveis leitores, neste exerci a salutar arte de conversar comigo mesmo, fugindo à tentação de estabelecer um eu lírico, este instituto tão caro à história da literatura e que o Alberto Pucheu disse, em uma das muitas lives que vi nesta quarentena, ser algo já praticamente inexistente na atual cena da poesia.

Creio ser o poema bastante claro no tocante ao que entendo como poesia, i. é, uma forma de estar no mundo, de forjá-lo, entendê-lo. Uma forma também de estar com o outro, conversar com ele, revelar-me e conhecê-lo.

Para mim, este poema representa minha profissão de fé, pois foi apenas com ele, após tantos anos dedicando-me à poesia, que finalmente se me revelou meu projeto estético, se é que ele existe, como se tal revelação me viesse pela voz de outro, para outro, um outro que sou eu para mim mesmo.

Talvez ao dizer isso eu soe contraditório e julguem que acredito ter recebido uma mensagem de fora de mim. Mas não. Assim como García Lorca, não creio ter sido tocado pela inspiração de uma musa distante ou resguardado pela proteção de um anjo. O que mais sinto, penso e sei, é que fui chacoalhado pela provocação de um duende.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Garimpo

 



Cavar a terra,

lavar a areia,

peneirar, peneirar, peneirar...

Em meio à lama

divisar o brilho

que se oculta

nos charcos,

nos monturos,

no útero do solo,

o brilho que dorme

no abraço das pedras.

Trazer à luz

o que há de precioso a refletir

a distante luz das estrelas.

Glaucio Cardoso

17/06/2016

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Borgiano

 



Às vezes,

Quando estou dormindo,

Tenho a certeza

De que algo em mim

Permanece desperto.

Sei que acordado

Algo em mim

Ainda sonha.

Glaucio Cardoso

2019

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Fragmento encontrado em 3076



E quando tudo isso for passado,
Haveremos de olhar
Mais nos olhos que nas telas.
Buscaremos mais abraços verdadeiros,
Sorriremos mais francamente,
E aprenderemos a beleza
De estarmos realmente lado a lado,
Assim, sem nem precisar dizer nada,
Mas sem nos distrair na virtualidade.
Quando tudo isso for passado,
Acho que o mundo estará
Um pouco mais silêncio,
Muitos rostos não serão mais,
E talvez nem o meu ainda seja.
Entenderemos finalmente
Que ausências não se substituem,
Mesmo quando as presenças se sucedem.
Quando tudo isso for passado,
Talvez entendamos
Que tudo que passou
Não passou de presente,
Chance, oportunidade,
Chamado...
Quando tudo isso for passado,
O futuro, que nunca chega,
Não será mais utopia
Ou nostalgia em construção.
Quando tudo isso for passado,
Que sejamos todos gratos
Por tudo que temos passado.
Glaucio Cardoso
13/05/2020

sexta-feira, 1 de maio de 2020

O que não está no gibi

Anotações em torno da leitura de
Bill Finger - A história secreta do Cavaleiro das Trevas



É inegável o impacto que os heróis dos quadrinhos exercem em nossa cultura. Muito antes de lotarem as salas de cinema, os personagens mascarados, com suas roupas colantes, poderes e habilidades sobre-humanas já faziam parte de nosso imaginário cotidiano, com aventuras de tirar o fôlego, seja pelo vertiginoso de suas ações, seja pela profundidade e complexidade de algumas tramas.
Entretanto, estes heróis surgem das cabeças e mãos de homens que, apesar da aparência, estão longe de ser comuns. Homens cujas vidas podem ser tão ou mais incríveis que as aventuras imaginárias em que seus personagens enfrentam a injustiça. A vida real também tem seus heróis e, infelizmente, seus vilões.
Bill Finger – A história secreta do Cavaleiro das Trevas (Skript Editora: 2019) lança um pouco de luz sobre a vida de um dos responsáveis pela criação do (possivelmente) mais popular dentre os heróis dos quadrinhos: o Batman!
Eu já tinha ouvido falar no biografado nos idos dos anos 90, mais precisamente no prefácio do Superalmanaque DC, nº 01, que eu, então com pouco mais de 13 anos, li com os olhos vidrados da empolgação que só conhecemos realmente quando temos em mãos algo que queremos muito (foi necessário economizar o dinheiro do lanche da escola por quase uma semana para que pudesse comprar aquela edição de quase 300 páginas).
 Com o passar dos anos, o nome de Finger foi sendo cada vez mais lembrado pelos pesquisadores da história dos quadrinhos, até ser reconhecido como o real gênio por trás dos principais elementos que viriam a compor o Homem Morcego.
Nesta biografia em quadrinhos de Diego Moreau & Douglas Freitas (Roteiro), Sandro Zambi (Arte e letras) e Ítalo da Silva Bispo (Cores) temos talvez o mais digno dos esforços para conferir ao biografado o merecido reconhecimento.
Mais do que um trabalho documental, o livro apresenta uma história potente e emocionante, conseguindo a combinação perfeita (e dificilmente alcançada) entre relato histórico e narrativa dramática.
Finger nos é mostrado como sendo um leitor voraz, um admirador das artes, um cinéfilo, escritor, homem de cultura rica que se manifesta numa criatividade aparentemente inesgotável. 
O processo criativo que levou à criação do Batman, partindo das ideias iniciais (e simplórias) de Bob Kane (que acabaria levando todos os créditos), é apresentado com um dinamismo de imagens que nos remete à linguagem cinematográfica sem perder a qualidade do literário, um
efeito que só é possível em [bons] quadrinhos.
Mas se engana quem pensar que a obra ficará restrita a Finger, Kane e Batman. Vemos um verdadeiro retrato dos EUA no século XX, com suas crises e guerras, a discriminação sofrida pelos judeus, a história da ascensão dos quadrinhos, sua perseguição por grupos conservadores que os viam como responsáveis pela corrupção da juventude (um pensamento tacanha que ainda ecoa hoje), o surgimento de grandes nomes da indústria, tudo isso se abrindo em múltiplas camadas textuais que nos levam a um novo olhar sobre aquela que foi chamada por Will Eisner de “Arte Sequencial” e que hoje é também conhecida como “Nona Arte”.
Repleto de homenagens e referências visuais, Bill Finger – A história secreta do Cavaleiro das Trevas é um livro belo, triste, divertido, poético, emocionante e necessário.

OBS: O livro pode ser adquirido clicando AQUI.

sábado, 25 de abril de 2020

Qual a cor desse fogo?


Anotações em torno da leitura de Os Transparentes, de Ondjaki

Eu já tinha lido alguns poemas de autor angolano Ondjaki quando recebi o convite
para participar do grupo de leitura promovido pela Stop and Learn, escola de idiomas sediada na cidade de Franca (SP). Nestes tempos de quarentena, quando somos compelidos ao isolamento social e explodem as reuniões on-line, as lives e outras formas tecnológicas de diminuir a sensação de isolamento, os quase 800km que separam Mesquita (RJ) da cidade paulista não me impediram de estar com outros leitores.

Como disse, eu já lera algo da poesia de Ondjaki, o que me fez curioso quanto à sua escrita em prosa. A primeira surpresa: sua prosa é totalmente permeada pela potência do poético.

E que obra! Densa! Inquietante! Atual...

Pelas páginas vemos um desfilar de personagens que se presentificam por alguns momentos para, logo a seguir, se diluírem pelas ruas de Luanda. Seus nomes falam muito mais de ideias e sensações, mais de identidades pessoais que se personificam junto ao coletivo que de meros registros burocráticos: o Carteiro, o Cego, o VendedorDeConchas, JoãoDevagar, MariaComForça, o CamaradaMudo, Odonato...

Ah, Odonato! Talvez a figura central, aquele que ao longo da história representa nosso próprio sentimento de estar no mundo nestes dias amargos que se desenrolam, ao menos aqui no Brasil. É ele o sujeito que vai corporificando a transparência de toda uma nação, de toda uma classe social, aquela que é sempre deixada de fora das celebrações oficiais e que muitas vezes só é lembrada para votos, pagamento de impostos e a procriação que garante a manutenção do status quo de uma minoria composta por políticos profissionais.

- o país dói-me... a guerra, os desentendimentos políticos, todos os nossos desentendimentos, os de dentro e os que são provocados por aqueles que são de fora...

Palavras de um personagem luandense, nascido da cabeça de um autor universal, escritas há quase dez anos e que ecoam um sentimento tão presente, tão contemporâneo, tão nosso enquanto brasileiros.

É essa dor que mais enfatiza a transparência (literal) do personagem. Sua pele vai se tornando translúcida sem que ninguém, nem mesmo ele, chegue a achar isso exatamente inusitado. Como o Gregor Samsa, de A Metamorfose (Kafka), que não se surpreende ao ver-se transformado num inseto enorme, pois era para ele a consequência natural de sua vida e seu trabalho, Odonato demonstra aceitação, e até mesmo uma dose de prazer, em sua nova condição, antecipando que seria ela a responsável por sua libertação final.

Outro personagem de extrema grandeza é AvóKunjikise, que no seu dialeto todo próprio, muitas vezes cifrado, representa o misticismo ancestral, o conhecimento do oculto, capaz de fazer com que suas preces chegassem às almas do outro mundo. Tal mística se reflete também no prédio que verte água em meio a uma cidade onde esta é sempre escassa. Talvez o prédio e a mais velha sejam consciências que se sobrepõem à própria narrativa:

- o tempo é um lugar que também fica parado [...]

Palavras da AvóKunjikise que podem ser lidas em uma dimensão metalinguística. Vivemos um tempo estranho. As narrativas ficcionais parecem rebelar-se contra o ficcional: tudo precisa “fazer sentido” em nome de uma verossimilhança que apenas reflete a perda do estatuto de mito antes concernente ao ato de narrar. Em contrapartida, vemos a mitificação da narrativa que deveria ser o mais realista possível, principalmente quando governantes se apropriam da linguagem para fazer-se passar pelo que não são.

Neste sentido, Os Transparentes representa um esforço de reaproximação do mitológico. Seu começo é enganador: parece que estamos diante de uma escrita convencional, comum, carregada de didatismo.  Linhas adiante, somos lançados em um torvelinho conceitual que, de um lado, não perde a história de vista e, de outro, é um permanente reinventar.

O texto em si é tão vasto que não cabe em uma análise apressada, tão pouco caberá em anotações despretensiosas como estas. É de uma riqueza tão grande que é possível traçar-lhe diálogos com Guimarães Rosa, Clarice Lispector, o já mencionado Kafka, George Orwell e outras artes.

A leitura em grupo nos permite encarar as várias dimensões em que essa história se desdobra, obra múltipla e universal cuja potência nos invade aos poucos e vai nos preenchendo com seu fogo vermelho, um vermelho devagarinho...


Glaucio Cardoso


OBS: O livro está disponível na Amazon em formato digital, podendo ser adquirido AQUI

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Ainda




Ainda é estranho
Não ter você na sala.
Estranho que sua presença silenciosa
Se tornou essa ausência que grita.
Os dias passam,
As lembranças vêm e vão,
Vêm e vão,
Vêm e em vão
Tento segurar cada uma...
É que tudo em você
Parecia tão eterno
Que me fez esquecer que um dia
A Eternidade te chamaria.
E eu sei,
Pois você ensinou,
Que nenhum adeus
É adeus,
Que tudo é até breve,
E mostrou que o amor
Pode caber inteirinho numa vida,
Num abraço
Ou num aceno.

Glaucio Cardoso
14/03/2020
Para Alaíde Varella (1924-2020)

sexta-feira, 6 de março de 2020

Trovadores do Cruzeiro - o livro

E-book gratuito
CLIQUE NA CAPA PARA BAIXAR

Um registro pessoal do processo de criação da performance lítero-musical apresentada por Glaucio Cardoso e Júnior Vidal no encerramento do 10º Fórum Nacional de Arte Espírita (Florianópolis/2013).

Após cuidadoso resgate de anotações pessoais feitas durante o processo de concepção da performance, eis que apresentamos este e-book totalmente gratuito.
Acreditamos que será útil como documento da gênese de uma arte bem como trará boas lembranças àqueles que estavam lá.


PS: Se fizer o download, não deixe de comentar essa publicação. Assim poderemos saber se está atingindo o objetivo.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Da convocação



Vamos negar tudo,
Dizer que nada é real,
Somente o que eles dizem é válido.
Vamos justificar a morte dos nativos,
Vamos aplaudir a queima de livros,
Vamos vender tudo,
Vender a água,
Vender as matas, animais,
Vender vidas,
Vender o passado e o futuro
Enquanto nos tomam o presente.
Vamos fechar os olhos
À desumanização da polícia,
À desumanização do humano,
À demolição de nossas bases.
Vamos louvar heróis inventados,
Mitos mentirosos,
Ídolos com pés de barro.
Vamos esquecer quem somos
E comprar culturas estrangeiras
Cristalizadas e enlatadas.
Vamos louvar a ignorância,
Polarizar todos os lados.
Vam... NÃO!!!
Vamos parar de ser gado!
Vamos parar pra pensar!
Vamos parar de umbiguismo!
Vamos sonhar o amanhã!
Vamos fazer o amanhã!
Vamos fazer a diferença
Desfazendo a indiferença!
Vamos?
VAMOS!
Glaucio Cardoso
13/02/2020


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O herói de mil faces – impressões de um leitor





A poucos dias terminei a leitura de O herói de mil faces, de Joseph Campbell (Foto à direita). Durante anos ouvira falar dessa obra e lera muitos excertos da mesma, principalmente aqueles que procuravam resumir o que se convencionou chamar de a Jornada do Herói, sem nunca ter conseguido o livro em si. Até que finalmente o encontrei na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro (setembro/2019).
            Não tentarei fazer um resumo do estudo de Campbell, pois creio que seria no mínimo desrespeitoso para com um trabalho de tamanho fôlego e relevância. O que se segue é apenas um amontoado de pensamentos, talvez ainda imprecisos, que sua leitura semeou em minha mente e que, creio, me acompanharão por tanto tempo quanto eu me permitir pensar o humano e o literário sob a ótica do mitológico conforme exposto pelo autor.
            Quer aceitemos ou não, somos todos frutos das narrativas que nos perpassam. Desde os mitos fundadores ancestrais, até as narrativas cinematográficas, passando pela literatura em todas as suas vertentes, pelas histórias em quadrinhos, pelas piadas contadas em volta de uma mesa, somos seres que aspiram ao mitológico, que nos encontramos nessa caminhada composta de inúmeras etapas.
            A Jornada do Herói, o monomito estudado por Campbell, se encontra arraigada na própria formação das sociedades e dos indivíduos. O grande mérito do estudo desse autor estadunidense reside no fato de não privilegiar nenhuma mitologia em detrimento de outras.
No mesmo nível se encontram deuses como Zeus e Exú, o herói Gilgamesh e a dona de casa, os relatos fundadores e os sonhos, quando Campbell dialoga com a psicanálise de forma inteligente, embora não isenta de questionamento, o que só enriquece o pensar sobre seu trabalho.
Há espaço para se pensar na figura central do Cristianismo, Jesus, como sendo um herói típico das narrativas primitivas ou literárias, demonstrando ser ele o humano que se diviniza por seus próprios méritos, diferente do enviado divino distante da humanidade, cujos feitos e ações são inalcançáveis pelos “simples mortais”, conforme a religião institucionalizada acabou cunhando. Para Campbell, é como se o Cristianismo, ao elevar Jesus à condição de inigualável, traísse suas palavras: “Vós sois deuses, o que faço podeis fazer e, se quiserdes, muito mais”.
Essa aventura do herói seria refletida em cada ação nossa, mesmo a mais corriqueira, pois estamos imersos em mitologias coletivas e pessoais, sem que seja possível estabelecer uma real fronteira entre elas. Nossa jornada se confunde com a jornada do coletivo e é prova de amadurecimento quando entendemos esse coletivo para além das fronteiras inventadas pelas nações.
Num tempo como o nosso, em que diversos países veem o surgimento e a ascensão de líderes pseudonacionalistas com pretensões fascistas, é impressionante ler esse trecho em uma obra publicada há mais de 70 anos:
Nos nossos dias, a comunidade é o planeta e não a nação com seus limites; eis por que os padrões da agressão projetada, que antes serviam para coordenar o grupo voltado para si mesmo, hoje podem apenas dividi-lo em facções. A ideia de nação, com a bandeira servindo de totem, serve hoje de elemento engrandecedor do ego infantil, e não de elemento aniquilador da situação infantil. (2007:373)
            Não se trata de abolir o sentimento de pertença a uma nação, mas de amadurecer essa ideia de nação para abarcar todo o planeta do qual fazemos parte.
            Vivemos por vezes tão preocupados com o imediatismo de nosso dia a dia que soa estranho que alguém volte o olhar para o passado. Aí reside um erro de interpretação que a massa comete em sua cegueira: achar que o passado realmente passou. O passado, os mitos, lendas e narrativas são em verdade nosso presente e nosso futuro, pois sem ele não somos ou seremos.
            Haveria ainda muito o que dizer a respeito de inúmeros trechos do livro, mas creio que preciso de tempo para amadurecer as ideias que ele me fez fervilhar no cérebro.
            O livro merece ser lido e relido, seja por estudiosos, seja por curiosos. Não vou enganá-los dizendo ser uma obra cuja leitura pode ser feita apressadamente. É tão rica de ideias e informações que precisará de tempo para ser devidamente apreendida. Talvez ao longo de uma vida inteira.
Glaucio Cardoso
O herói de mil faces
Joseph Campbell
Ed. Cultrix/Pensamento
414 páginas.