sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Carlos de Assumpção: a ancestralidade do amanhã




            Se você ainda não viu o filme Carlos de Assumpção: Protesto, pare de ler esse texto agora e vá assisti-lo.
            Nada do que eu venha a dizer a respeito da acalentada película de Alberto Pucheu poderá dar conta da força que emana das imagens captadas por sua câmera, por seu olhar; a força que jorra das palavras do poeta que nos é apresentado como um presente necessário, incontornável para todos os estudiosos e amantes da poesia.
            Já faz algum tempo que Pucheu vem se dedicando à realização de documentários enfocando poetas que compõem algumas das cenas poéticas da contemporaneidade. Foi assim que tivemos a oportunidade de acompanhar a evolução de sua linguagem audiovisual, que parece perseguir a presentificação do distante, um projeto cujo desenvolvimento pode ser acompanhado em  Leonardo Fróes, um animal na montanha (2017), Vicente Franz Cecim: um anima na floreta (2017), e os vídeos da série Autobiografias poético-políticas (2019): André Luiz Pinto: Prazer, esse sou eu,  Tatiana Pequeno: muambas e bombas para o nosso tempo, Bruna Mitrano: a 70km do mar e Danielle Magalhães: Carta aos Sobreviventes.
            Nestes filmes, representantes das novas possibilidades que a tecnologia nos proporciona com a facilidade de difusão de conteúdos, já fica clara a intenção de fazer chegar a todos os lugares os poetas que não mais precisam retirar-se de seus lugares de origem para que sua poesia seja conhecida. São vozes de gerações distintas se encontrando, tendo em comum o sentido de que poesia e vida são, por definição de ofício, indistinguíveis.
E de repente, não mais que de repente, somos surpreendidos com a poesia de Carlos de Assumpção, tão diferente das obras dos poetas apresentados nos filmes anteriores. Enquanto naqueles é visível um hermetismo estético, embora com notáveis traços biográficos recriados poeticamente pelos autores, neste poeta vemos uma linguagem simples, direta, não muito afeita ao excesso de metaforização, servindo ao engajamento, buscando uma comunicação imediata com o leitor/ouvinte.

Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar

            Assim inicia o poema de Carlos de Assumpção que dá título ao filme. Em um texto publicado no portal da Revista Cult, e em diversas postagens feitas no facebook, Alberto Pucheu dá a entender que topou com o poema por acaso enquanto fazia uma pesquisa para a mesma Revista Cult. Como por formação filosófico-religiosa não creio na existência do acaso, assumirei como verdade particular que o poema chegou-lhe em momento oportuno, um momento necessário para sua (re)descoberta.
            Pensar que tal poema foi escrito na década de 50 nos coloca diante de um hiato, um paradoxo. Um poema cujo grito reverbera através do tempo, dirigindo-se tanto ao passado quanto ao futuro, ecoando no presente com o frescor das grandes mensagens.
            Estará equivocado quem pensar que a simplicidade da poesia de Carlos de Asssumpção é um traço que lhe apequena. Se o poeta abre mão da metaforização, é para assim fazer poesia do mais alto nível, daquele tipo que provoca, que incomoda, que nos tira da zona de conforto e nos faz pensar criticamente:
[...]
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que esta gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é

E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vitima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do País
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
[...]
            Seu Carlos, impossível não chamá-lo assim, com a familiaridade que sua figura imponente nos alcança, é mais do que apenas poeta, é a representação da ancestralidade tornada humano, um griot urbano, guardião de uma memória tantas vezes ignorada pela história oficial.
Herdeiro da história de reis que foram escravizados, herdeiro da memória dos marginalizados por uma Abolição que nunca veio de fato, o poeta questiona o discurso oficial de uma história contada do ponto de vista do opressor branco, rendendo respeito aos Orixás e aos Ancestrais, igualados pelo tempo e pela transcendência que atingem:

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Carregaram sobre as costas
A cruz da escravidão
[...]
Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que História não faz
Questão de contar

É a história
Dos que desesperados
Se atiravam dos navios
No abismo do oceano
E eram acalentados
Por Iemanjá
[...]
Não me venham dizer
Que os meus avós foram
Escravos submissos
Por favor não me venham dizer
Eu não aceito mentiras
Cortarei com a espada
Dos meus versos
A cabeça de todas as mentiras
Mal intencionadas
Com que pretendem humilhar-me
Destruir o meu orgulho
Falseando também
A história dos meus avós
[...]

            Com os pés fincados na memória e o olhar lançado ao futuro, Seu Carlos não se furta a pensar nosso presente em poemas que bradam perguntas emblemáticas de nosso tempo como

Quem mandou matar Marielle,
A nossa nova Dandara?
Quem mandou matar Marielle,
A enviada de Ogum?

Quem tem ceifado tantos sonhos?
Quem tem coberto todo o país?
Com tantas mortes sem explicação?
Quem tem matado gente inocente e culpada?

Há no ar silêncio enorme,
Não há nenhuma resposta.
Será que a justiça dorme
Ou a justiça está morta?
 
Marielle Franco e Dandara dos Palmares: a mesma luta



            E ao unir passado e presente na construção do futuro, Seu Carlos convoca Zumbi do Palmares, esse ancestral tornado força primordial, como o representante de um novo mito fundador, um mito do retorno, algo como a versão dos excluídos para o Sebatianismo.

Quando Zumbi voltar
Com a lança na mão
Vai botar pra correr
Esse povo engravatado
Arrogante e valentão
Que se julga dono exclusivo
De tudo aqui
Que humilha e discrimina
Negro, índio e branco pobre...

            Contrariando uma leitura superficial que alguns poderiam vir a fazer, Seu Carlos evoca “Negro, índio e branco pobre” como sendo todos seus iguais, seja nesse poema, seja em uma espécie de bordão que não se cansa de repetir

Eu sou Carlos de Assumpção,
Eu sou irmão de todo mundo
E todo mundo é meu irmão.

E o mais que se pode falar é parabenizar e agradecer ao poeta-cineasta Alberto Pucheu por seu empenho em difundir a obra de Carlos de Assumpção, preenchendo essa [até então] lacuna imperdoável na história da poesia brasileira.
            Glaucio Cardoso
Carlos de Assumpção: Protesto

Direção:
Alberto Pucheu
&
Danielle Magalhães

Ano: 2019

Duração: 83 min.

Cartaz de Luis Saguar


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Boneco de palito



Num papel eu desenhei
Um boneco de palito.
Pouco mais que um rabisco
É o boneco de palito.
Que coisa mais besta
É um boneco de palito!
A cabeça de bolinha
Que nem chega a ser redonda,
Cinco traços meio retos
Para o tronco e para os membros.
Vou botar dois pontinhos para os olhos
E um tracinho para a boca,
Assim fica mais bonito
Esse boneco de palito.
O boneco de palito é fácil de se fazer,
Fica simples,
Incompleto
E imperfeito,
Igualzinho a todo mundo.
Glaucio Cardoso
04/08/2019