terça-feira, 29 de março de 2011

Eu não sou Chico

Eu não sou Chico,
Mas eu quero ser.
Quero poder espalhar bondade,
Ter palavras de esperança,
Ajudar o caído, enxugar lágrimas,
Com o lápis em punho
Mostrar a ilusão do fim
Que no fundo é começo.

Eu não sou Chico,
Mas eu tento ser.
Tento imitar-lhe os gestos,
Tento falar brando,
Tento olhar com igualdade,
Amar sem distinção.
Falta-me deixar de imitar a aparência
E viver a sua essência na minha consciência.

Eu não sou Chico,
Mas procuro ser.
Procuro seguir seu exemplo,
Procuro entender sua mensagem
Procurando em cada linha que dos outros
Ele portou a voz
Um pouquinho de mim ainda desconhecido.

E cada vez que estendo a mão,
Que me acalmo na hora da ira,
Que me esqueço de mim,
Cada vez que dou do que me falta,
Que pratico a caridade sem pensar primeiro,
Que sou justo sem ser rude,
Percebo regozijado
Que eu não sou Chico,
Mas posso ser.

terça-feira, 22 de março de 2011

U. T. I. (Um Tempo Inquieto)

Atrás das paredes frias
o embate prossegue incessante.
Dois gigantes potentes
se puxam, se empurram
no combate indeciso.
Eros e Tânatos,
Apolo e Dionísio,
a pomba e o falcão
unidos em dança,
dois passos pra lá,
dois passos pra cá.
Vitória e derrota se fundem,
confundem, difundem
num momento infindável
de êxtase e agonia.
Essa dança prossegue
da aurora ao ocaso
e avança na noite
até a alvorada.
No meio da luta
pequeno ruído num ponto distante
destoa da batalha silenciosa.
E o mundo...
E a luta...
E o luto...
E o tudo...
Param pra ouvir.
Um choro fraquinho,
baixinho, miudinho,
singelo, tão belo,
tão nobre, tão pobre,
tão fraco, tão sacro,
tão lindo, infindo
num simples momento
faz quente na gente.
Atrás das paredes frias
o embate prossegue incessante...
Acima das máquinas que me respiram
e das luzes que me pulsam
O choro miúdo
do filho ainda de outro
me deu resultado
dizendo inegável
que a vida venceu.

terça-feira, 15 de março de 2011

Inverbal

É mais que amar,
É mais que querer.
O amor pede uma ação,
O verbo será amar.
E a amizade,
Sentimento sem verbo?
“Amigar”? não dá conta,
Remete pro outro lado.
“Amizadar”? parece azedume
Que destoa,
Que não soa,
Que não casa
Com a doçura.
“Amizadear”?
Quanto alarde
Pra falar,
Sem tempo de sentir
Na presença do intangível
Sentimento sem verbo
Verbo inexistente
De uma ligação inquebrável,
Ação inexistente
Que não estagna.
Você tem nome
Para o inominável?
Amigo
Âmago,
Ômega.

terça-feira, 8 de março de 2011

Veneziano

E senti a glória imensa
De me ocultar ao ser visto por todos.
E me pus dentro de mim
Por não suportar mais
A minha própria companhia,
A vizinhança com meu eu
E o convívio comigo.
Desejei ampliar meu ser,
Multipliquei-me pra me sentir,
Pra me sentir precisei sentir tudo,
Disse o Pessoa
E a Ana C. não copiou,
Por isso eu copio.
Estive em todos os recantos
Claros, escuros, coloridos,
Desmanchei a pintura
De minha face
E nas cinzas renasci,
Refiz minha máscara
E diante do espelho
Senti novamente a glória
De estar oculto de todos,
Mas visível para mim.
Eu era a máscara
Que me mostrava
A realidade de uma
Existência, resistência, persistência.
Penitência.
E senti o êxtase de ser
Arlequinal,
Pierrônico,
Colombínico,
Rasgando as carnes da hipocrisia
E do mais do mesmo (saudade do legionário).
Minha commedia dell’arte
Encenada ao longo de 365,
No dia do descanso me fantasio
E na quarta-cinza
Reponho minha máscara.

terça-feira, 1 de março de 2011

Maiakovski e a missão do poeta


O Poeta-Operário
Vladimir Maiakovski
(1893-1930)

Grita-se ao poeta:
“Queria te ver numa fábrica!
O que? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem.”
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fa-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e, novo!
Com os aradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!
O poeta russo Vladimir Maiakovski legou ao mundo uma obra que prima pela originalidade e pelo tom de revolta. É como se estivéssemos diante de um orador que grita às almas adormecidas que é tempo de mudar as atitudes que nos prendem ao lodo de nossa própria mesquinhez. Apesar disso, seu maior mérito, Maiakovski está longe de produzir míseros panfletos. Analisemos um de seus textos.
Iniciemos nossa leitura de “O Poeta-Operário” com uma simples observação de seu título: trata-se de um substantivo duplo, bem ao gosto dos modernistas. Sabendo que o substantivo duplo é um recurso que visa a substituição de adjetivos por palavras que caracterizem o nome, dando a ele antes uma imagem do que uma significação, poderemos ver no título uma representação que se distancia da figura romântica do poeta como “aquele ser que está acima dos simples mortais por ter contato com as musas”. Não. O poeta é aquele que trabalha a palavra, que dobra, a transforma. Tarefa das mais difíceis pois nem sempre as palavras são fáceis de manejar. Por isso a imagem do poeta enquanto aquele que se faz operário da língua não poderia ser mais feliz.
Fica evidente a consciência que o eu lírico tem do quanto sua obra é por vezes menosprezada por aqueles que só vêem como útil aquilo que tem relação com a sociedade material, capitalista. Quer dizer então que o único trabalho que possui alguma serventia ou relevância social é aquele que se produz numa fábrica e que para esse é preciso coragem? Maiakovski, através de seu poeta/eu lírico demonstra que está longe de concordar com tal conceito.
O poeta é aquele que se entrega totalmente à sua produção, que põe o coração no trabalho com afinco e dedicação diária. Verdadeira fábrica de versos (longe do sentido parnasiano que a idéia adquiriu) ele queima, arde, faz fogo e fumaça sem chaminés. E se não há chaminés que possam dissipar a fumaça como ela se espalha?
Que estou dizendo? Chaminés não espalham fumaça alguma! Elas apenas a dissipam, jogando-as para o alto, sempre muito acima das casas a fim de que não entre em contato com as pessoas e as contamine. Mas a fumaça da poesia não sai pelas chaminés altas; ela sai por baixo, se misturando com a poeira das ruas e “contaminando” aqueles que passam e respiram. Para tal contaminação é preciso mais coragem, pois é nesse momento que o poeta se mostrará responsável por aqueles que contaminar com sua poesia, suas idéias...
A coragem de que o poeta necessita estar investido só pode ser compreendida por aqueles que a) mergulham tão fundo em sua leitura que sentem as palavras do poeta como sendo suas, ou b) já experimentaram a excitação proveniente do fato de estar escrevendo algo que bem poderia ser dito por outro, mas que é por seus dedos, suas mãos e sua alma que brotam ao mundo tal qual uma sudorese impossível de ser detida.
Prossigamos em nossa leitura. Identifico pelo menos duas referências bíblicas. Observem-se os seguintes versos:
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Ao ler a analogia do trabalho do poeta com o daqueles que trabalham a madeira, foi-me impossível não lembrar da tradição cristã que mostra José, pai de Jesus, como um carpinteiro, profissão que ensinou ao “filho de Deus”. Estaria aqui configurada a idéia de poesia como missão, mostrando que o poeta se afastou da dependência que tinha das musas, mas que continua atendendo a um ser superior a si e em favor dessa “obediência” emprega todos os seus talentos e capacidades.
A imagem de missionário é realçada pela comparação com os pescadores e do papel do poeta como aquele que pesca “gente viva”. Lembre-se aqui a passagem do Evangelho em que Jesus diz a Pedro que o fará “pescador de homens” (Mateus 04:19).
O poeta, e o artista de um modo geral, possui uma missão ao mesmo tempo sagrada e profana, maldita e benta. A missão de simplesmente SER e DIZER.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Os altos-fornos trazem de volta a idéia de fábrica e de fogo, temperatura. Não é nas altas temperaturas que se forja o metal? Não seria a poesia a forja da alma humana que após o calor precisa ser polida? A imagem da poesia como sendo detentora da “lixa do verso” mostra a postura de Maiakovski diante do papel da poesia: ser um instrumento de incômodo, de burilamento do ser. Uma placa de metal, após ser devidamente polida, transforma-se num espelho. O processo de polimento através da poesia faz com que alma reflita o que se lhe põe à frente. Refletir a realidade? NÃO. Refletir na realidade.
Vale a pena apontar para a riqueza de significados desse ‘refletir na realidade’.
Pode-se pensar em ‘refletir’ como um sinônimo de ‘pensar’, ‘analisar’, ‘questionar’, ‘problematizar’ sobre a realidade, numa postura de pensamento e visão crítica do real.
Pode-se também entender esse ‘refletir na realidade’ como sendo as mudanças operadas no interior de cada um, de cada alma polida, que se refletem na realidade que o cerca, ou seja, que operam mudanças para além do individual, atingindo o social.
O poema segue em analogias às quais se torna desnecessária qualquer explicação, apenas as indiquemos:
o poeta – o técnico
corações – motores
alma – força motriz
o poeta – a massa operária
a poesia – o trabalho manual
Poetas e operários. Intelectuais e trabalhadores braçais. Todos têm uma mesma relevância na sociedade. Todos podem mudar os rumos do mundo, fazê-lo “marchar num ritmo célere”, sem diferenças, sem qualificativos do tipo ‘tal tarefa é mais ou menos importante’. A poesia é configurada como tendo tanta relevância e utilidade para a sociedade quanto qualquer outro item manufaturado.
E tudo o que não existir para servir à humanidade como um todo, sejam as “Frases vazias” que “não agradam” sejam “os arados vazios”, deve ser macerado, lançados ao moinho para serem triturados e servir (quem sabe) de adubo a partir do qual brotarão frutos que se tornem o alimento e a matéria prima pra as obras do porvir.
Vem-me à memória um belo poema do dramaturgo, poeta e amigo Alberto Centurião, com o qual encerro este texto:
"o poeta com estrelas na cabeça
e dentes cariados na boca
(e o meu amigo diz que o artista
não deve ser pago porque
é um dom divino
o de grafar belezas
para ensolarar a vida
dos trabalhadores profissionais)
mas o poeta tem a boca cheia
de dentes cariados e passa
a madrugada nas linhas do poema
- não é o livro de poesia necessário
quanto o pão da padaria?
- ou fazer bom pão também
não é um dom de Deus?"
Referência
MAIAKOVSKI, Vladimir. Antologia poética. Trad. de E. Carrera Guerra. Rio de Janeiro, Ed. Leitura. 1993.