terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando Pessoa: 75 anos de eternidade

     No dia 30 de novembro de 1935, falecia o poeta português Fernando Pessoa, genial criador dos heterônimos e um dos maiores escritores da história. Para lembrar os 75 anos de sua eternização, trago um poema que fiz para dialogar com o autor de Autopsicografia e que se encontra na coletânea "De Pessoa para Pessoa" (Ed. Litteris).


Pessoalmente falando
Meu coração
Comboio do imaginário sentir
Que por minhas mãos
Impõe-se à realidade
Dividido entre ter a razão
E não me pertencer.
Fingimento-verdade
Em completo e profundo
Movimento de ir
Em busca do não visto
E vivido.
Vivência alheia,
Outramento mimético do mimesmo,
Rodopio radical,
Racional...
Quem me lê
Não me vê,
Sente em si
Minha vida
Como sua.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Resistir não é inútil

     Durante a Segunda Grande Guerra, em diversas nações, uma palavra simbolizou a luta pela liberdade: partisan. Utilizada para denominar o membro de uma tropa irregular formada com o intuito de opôr-se a um governo estrangeiro, esse vocábulo popularizou-se sobremaneira durante aquele que é considerado o maior conflito do século XX e um dos maiores de toda a história. 
     Em vários países houve a resistência, muitas vezes com outros nomes, como os maquis (França), os Piratas de Edelweiss e a Rosa Branca (Alemanha). Vários nomes em torno de um mesmo ideal. Resistir, não se render diante de uma força estranha que busca submeter o espírito humano de forma brutal e violenta.
     Esses movimentos aclamados hoje como heróicos me vieram à lembrança em virtude da onda de violência que varre o Rio de Janeiro por estes dias. Não estou falando da resistência institucionalizada cujos representantes são as forças de segurança pública que, de forma organizada e equilibrada, estão combatendo as ondas de ataque de diversas facções criminosas. Falo de uma resistência muito mais forte. A resistência que vem diretamente do povo.
     Caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro hoje pela manhã, era-me possível sentir a tensão no ar, a sensação de expectativa, como se algo pudesse acontecer a qualquer momento. Sim, este sentimento está em todos e seria absurdo se fosse diferente, pois seria um sinal de que nossa indiferença finalmente atingiu níveis inumanos.
     O que me chama a atenção é o fato de que apesar do medo, apesar da tensão, os cariocas estão se negando a ceder a estes mesmos medo e tensão; não estão se rendendo ao sentimento de terror que está sendo inutilmente imposto à sua rotina. Estão todos buscando viver suas vidas e executar suas atividades com normalidade, em um comportamento que muito lembra o dos britânicos durante a Batalha da Inglaterra, quando as forças alemãs fizeram tantos ataques contra a ilha que as ruas viviam repletas de cartuchos das metralhadoras dos aviões.
      Sim, é possível resistir. É possível levar à efeito uma oposição pacífica sem que esta seja passiva.
     Talvez esta resistência dos cariocas não faça surgir nenhum nome de um indivíduo qualquer que se destaque em suas fileiras, como aconteceu com as resistências em vários países. E este é o grande trunfo da resistência carioca. 
     Não somos partisans.
     Não somos maquis.
     Somo apenas humanos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Canto infinito

Canto infinito


No meio do bosque
O cantor das copadas
Fez um pouso brusco
Que soou como derradeiro.
Seu trinado suave e forte
Reboava nas matas
Acordando seus irmãos.
Suas asas de um azul antes intenso
Já se haviam esmaecido
Para um tom meio sem graça,
Mas o canto que soltava,
Anunciando o amanhecer
Ou chamando a luz da lua,
Era o canto mais formoso
E, majestoso, dava gosto de se ouvir,
E não tinha uirapuru,
Pintassilgo ou canário
Que pudesse superar
O seu canto solitário.
E a passarada toda em festa
Soltava então os seus gorjeios
 Pra fazer segunda voz.
Do verão à primavera,
No outono e até no inverno,
O canto azulado se elevava
Mesmo quando tudo se aquietava.
E o tempo foi seguindo,
As cores das penas sumindo
E o canto inda mais vivo,
Mais firme e mais lindo.
Naquela manhã de sol
O Azul olhou pro céu
E sentiu o chamamento
De outro azul.
Soltou um suspiro musicado,
Uma lágrima derramou,
Foi virar canto infinito
E no infinito se lançou.
E a mata toda então vestiu luto,
Não teve mais cantoria,
Os pardais se recolheram,
As viuvinhas soluçaram,
Os colibris em revoada
Fizeram uma saudação.
Somente um seriema
De repente se lembrou
Que artista de verdade
Não morre, se eterniza.
E como uma homenagem
O seu canto estridulou
E a passarada toda em volta
A saudade cantou em cantos seus.
E o Azul eternizado
Recebeu tanta energia
Que rogou regozijado
Pra espalhar mais alegria
E virou cantor de Deus.

Glaucio Cardoso

sábado, 13 de novembro de 2010

Retalhos de memórias perdidas

     Do que é feita a história? Como ela se faz? Quem a faz?
     São questões que podem nos assaltar de vez em quando. O vulgo tende a achar que a história é feita apenas de grandes ações levadas à efeito por personagens inesquecíveis em momentos que passam à posteridade como decisivos. 
     É assim que acontecimentos como o Dia D, a Queda da Bastilha, os atentados de 11 de setembro se tornam na mente da massa fatos importantes, marcos históricos como se diz, e personagens como Hitler, Napoleão, Albert Sabin passam à história como heróis ou vilões.
     Mas o que dizer dos anônimos, ou quase, que tomam parte nos grandes acontecimentos? Não seriam eles também dignos de serem lembrados? E quanto ao ponto de vista daqueles personagens que colaboram, ou melhor dizendo, que são diretamente responsáveis pelos marcos históricos? Afinal, um fato só pode ser considerado de grandes proporções justamente por envolver o maior número de pequenos acontecimentos e de pessoas que dão seu quinhão à magnitude de qualquer evento.
     Estas reflexões me vêm à mente logo após a leitura de dois livros cujo tema é a Segunda Grande Guerra. Não, não se tratam de estudos sobre o grande conflito do século passado. Também não são textos com revelações dos bastidores da guerra. Tão pouco são narrativas de ficção ambientadas naquele contexto. São dois diários, isso mesmo, diários de guerra. Como se não bastasse, são dois diários de guerra escritos por brasileiros que lutaram na Itália.
     O Diário de Guerra (2008), de Rui Moreira Lima, e Diário de um Herói de Guerra (2006), organizado por Roberto Pessoa Ramos Neto, ambos publicados pela Adler, apresentam visões únicas e distintas sobre a participação da Força Aérea Brasileira (FAB) na campanha aliada em território italiano. É interessante notar como os mesmos acontecimentos podem ser narrados de forma tão diversa dependendo de qual for a intenção daquele que o narra. 
     O livro de Rui Moreira Lima, que já tinha brindado o público interessado pelo tema com o antológico e obrigatório Senta a Pua! (1980), apresenta anotações feitas in loco, isto é, em pleno campo de batalha, com as descrições resumidas das missões cumpridas pelo então Tenente do 1º Grupo de Aviação de Caça; anotações estas que  registram os componentes das esquadrilhas, os objetivos da missão e os alvos destruídos. Apontamentos feitos de forma metódica em pequenas cadernetas e que foram enriquecidos posteriormente por descrições mais detalhadas, inclusive com indicações sobre o desfecho de alguns acontecimentos.
     Já o Diário de um Herói de Guerra traz os apontamentos do então Capitão Roberto Pessoa Ramos organizados por seu neto homônimo. O que chama a atenção neste segundo título é o despojamento da escrita do jovem piloto brasileiro. Não há nele a preocupação em apresentar os dados ou os fatos de maneira acadêmica, formando antes um amálgama de registros e impressões, nos quais a visão pessoal do ser humano demonstra bem a garra, a fibra e o idealismo do guerreiro.
     Ambos os títulos servem como janelas para o passado, através das quais o leitor tem uma oportunidade rara de ver a guerra e a participação brasileira sem nenhum  artificialismo de discursos pseudo-ideológicos que se poderia esperar de livros com tal temática.
     Em um tempo dominado por uma visão que busca parecer intelectualizada, mas que disfarça sua superficialidade com palavras de efeito pronunciadas aos berros, em que o elogio a qualquer aspecto de nossa história militar vira motivo para sermos acusados de reacionários, em que ser patriota virou sinônimo de concordar com tudo o que a massa ignorante aceita vindo de cima, em que o Poder Total busca sutilmente impedir a liberdade de expressão e de pensamento, é oportuno lembrar destes esquecidos, injustiçados guerreiros que lutaram pela liberdade em um mundo cuja loucura só seria suplantada pela alienação de nossa época.
     Lutar pela liberdade com a bandeira de um país cujo poder era reconhecidamente totalitário pode parecer  hipócrita se visto com o olhar viciado por discursos vazios de ideal, como são os de nossos dias. Mas a verdade salta das páginas dos diários como a nos cobrar: o que vocês fizeram de nosso sacrifício?