quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Você sabe o que você canta?

 


Você sabe o que você canta?

Analisando músicas espíritas –

01 - Canção da Alegria Cristã (OUÇA)

Letra: Leopoldo Machado

Música: Oli de Castro

Glaucio Cardoso


Possivelmente a mais conhecida das músicas espíritas do Brasil, a Canção da Alegria Cristã, composta por Leopoldo Machado (Letra) e Oli de Castro (Música), merece ser estudada para que se lhe compreenda o posto de talvez a mais importante composição musical do movimento espírita, independente da forma que seja cantada.

É preciso começar por uma explicação: não sou um grande entendedor de música, possuindo apenas um conhecimento bastante medíocre dessa linguagem. Entretanto, sou um entusiasta da música espírita e um estudioso da poesia, compreendendo que as duas linguagens se comunicam constantemente, possuindo mesmo uma relação histórica que só há bem pouco tempo viu uma espécie de cisão. Sempre que algum amigo me apresenta uma canção qualquer, meu primeiro gesto é ler atentamente a letra da mesma, a qual compreendo como um tipo especial de poesia.

Explicação feita, vamos ao texto. As letras entre parênteses ao final de cada verso servem para estabelecer o esquema rímico do poema cantado.

Somos companheiros, amigos, irmãos (A)

Que vivem alegres pensando no bem (B)

A nossa alegria é de bons cristãos (A)

Não ofende a Jesus, nem fere a ninguém (B)


A nossa alegria (C)

É bem do Evangelho, (D)

Vibra e contagia (C)

Da criança ao velho. (D)


Mesmo entre perigos, (E)

Daremos as mãos,(A)

Como bons amigos, (E)

Como bons cristãos. (A)


Sempre ombro a ombro, Sempre lado a lado (F)

Vamos trabalhar com muita alegria (C)

Pelo Espiritismo mais cristianizado (F)

Pela implantação da paz e harmonia. (C)


A predominância da primeira pessoa do plural, expressa pelas formas verbais (“Somos”, “Daremos” e “Vamos”) e pelo pronome possessivo (“nossa”), representa a visão de uma religiosidade a um só tempo pessoal e coletiva. Não há a dependência em relação à divindade, como é comum nas religiões conservadoras (em especial no que se tornou o cristianismo de orientação católica e protestante), em consonância com os princípios espíritas que definem o indivíduo como artífice de seu destino. Ao mesmo tempo, a letra de Leopoldo indica a necessidade da colaboração mútua entre as pessoas, o que põe por terra o individualismo narcisista da sociedade na qual vivemos.

Este senso de coletividade é também enfatizado pelas rimas (A): “irmãos/cristãos”; “mãos/cristãos”. Note-se que a repetição da palavra “cristãos” expressa a ideia de fraternidade e união que o autor considera indissociáveis do real cristianismo, no qual os irmãos caminham sempre de mãos dadas, conceito que será retomado na última estrofe iniciada pelo verso “Sempre ombro a ombro, sempre lado a lado”. Há ainda que se ressaltar que para o autor da canção tal vivência religiosa de união e fraternidade não faz distinção de idade, pois “Vibra e contagia / da criança ao velho”.

Outro elemento presente na canção é o sentido de alegria, a qual se encontra expressa diretamente em quatro versos (2º, 3º, 5º e 14º), além do título, o que pode ser lido como um gesto de ruptura que merece ser desenvolvido.

Historicamente, as casas espíritas no Brasil reproduziam o comportamento oriundo dos meios católicos de conservarem os ambientes religiosos dentro de uma esfera de recolhimento que descambava invariavelmente para a morbidez. A herança dos cultos romanos dotou o cristianismo institucional de um sentimento trágico que se reflete em frases como “Cristo morreu por nós”, “somos todos devedores de Deus”, “não somos dignos” e outras que subjugam o homem a uma condição de eterna tristeza disfarçada de humildade. Este era também o panorama das instituições espíritas na primeira metade do século XX (e em algumas ainda hoje).

Neste sentido, a Canção da Alegria Cristã pode ser lida como uma música de protesto contra tal mentalidade que tanto incomodava seu autor. Em outros textos, Leopoldo Machado chegava a dizer que as casas espíritas deveriam deixar de ser câmaras mortuárias e deixar-se impregnar de “muita alegria! Que essa coisa de tristeza e casmurrice não é de quem segue aquele que disse ‘Alegrai-vos que é chegado o Reino de Deus!’”. Neste sentido, a ruptura da canção reproduz a ruptura que o próprio Espiritismo promoveu no século anterior em relação ao conservadorismo religioso.

Cabe aqui uma curiosidade sobre a letra em foco que serve para demonstrar a capacidade criativa de seu autor. Segundo Clóvis Ramos1, o que viria a ser a canção mais conhecida do movimento espírita era originalmente um poema escrito por Leopoldo para a campanha em prol da construção do Lar de Maria (Macaé-RJ), cujo 4º verso da 2ª estrofe era “Pela construção do Lar de Maria” e que foi alterado para “Pela implantação da paz e harmonia”. Uma mudança pequena, mas que conferiu ao poema um caráter de universalidade ausente na forma original, que o levaria a ser escolhido como Hino da Mocidade Espírita do Brasil durante o Congresso Brasileiro de Mocidades Espíritas (1948)2.

Sendo talvez a primeira música espírita a divulgar a proposta do Espiritismo de Vivos que seu autor defendia, difundida em todo o país com as mais variadas versões e arranjos musicais, a Canção da Alegria Cristã atravessa o tempo sem jamais deixar de ser atual, espalhando que a real vivência do Evangelho de caráter universalista (que “Não ofende a Jesus, nem fere a ninguém”) é indissociável da união e da alegria, pilares que levam à construção de um mundo de paz e de harmonia.

1In: Leopoldo Machado – Ideias e ideais. Rio de Janeiro: CELD, 1995.

2RAMOS, Clóvis. Primavera que desponta. Rio de Janeiro: Letras Espíritas, 1970.