quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Você sabe o que você canta? - 005

 – Analisando músicas espíritas –


O Tempo
(OUVIR)

Grupo Alma Sonora


Um dos critérios, talvez o principal, da escolha das canções que tenho analisado nesta série de textos é o de que preciso gostar delas em alguma medida. Pode não soar muito acadêmico, mas creiam quando digo que a maioria dos estudos na área de humanas possuem o critério do gosto pessoal em maior ou menor medida, embora nem sempre confessado.

Ainda me lembro da primeira vez em que ouvi o grupo Alma Sonora, de Curitiba-PA, cantando “O tempo”. Foi em uma das edições do Festival da Canção Espírita de Franca (FECEF). Quando a canção começou e fui acompanhando a letra pelo livrinho que a organização do evento distribui a cada edição, virei para meu amigo Anderson Daltro e falei emocionado: “Essa é uma das canções mais bonitas que já ouvi!”


O tempo é curto pra quem corre contra o tempo

O tempo é escasso pra quem não aperta o passo

O tempo passa devagar pra quem não tem com quem falar

O tempo quase não passa na vilinha de igreja e praça


A primeira parte da canção apresenta a temática que será predominante em toda ela: a relatividade do tempo a partir da percepção individual.

Note-se que os dois primeiros versos relacionam-se à mesma dimensão da realidade: a vida corrida que caracteriza a sociedade na qual nos encontramos mergulhados. É preciso estar sempre em movimento, ser produtivo, ser alguém que é útil para a sociedade. E quando sobra tempo para a vida?

O terceiro verso traz à tona um aspecto trágico decorrente daquilo que foi explorado nos dois versos anteriores: o sentimento de solidão. Se por um lado a vida corrida desta louca sociedade de consumo nos faz sentir que nunca temos tempo o suficiente, por outro essa mesma falta de tempo nos condena ao isolamento e assim vem a percepção de que, quando finalmente temos alguns momentos para descansar, somos assolados pelo silêncio. É a velhice que chega sem que realmente tenhamos criado laços; é o fim de semana vazio no qual buscamos nos ocupar com mais atividades para nos sentirmos úteis; é a impossibilidade do diálogo com os familiares para os quais somos ilustres desconhecidos.

No verso seguinte, vemos o contraste positivo a isso na imagem bucólica de uma vila perdida em algum lugar com o qual já sonhamos um dia, um lugar onde o tempo parece não passar, lembrando a “Cidadezinha qualquer” do poema de Drummond:


Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar.


Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.


Devagar… as janelas olham.


Eta vida besta, meu Deus.


Essa vida que parece não passar é diferente daquele tempo estagnado que massacra aqueles que não têm com quem falar. Aqui, no verso em questão, atualiza-se o fugere urben que foi tão praticado pelos poetas neoclássicos do movimento que ficaria conhecido como Arcadismo.


O tempo voa, voa, voa, voa, pra quem não está à toa

Tempo é aliado pra quem sabe o que está do outro lado

O tempo voa, voa, voa, voa, e nunca vai parar

Tempo é inimigo mortal pra quem acha que a morte é o final


Aqui uma imagem clichê que associa a passagem do tempo ao voo. Essa sensação de que o tempo voa associa-se primeiro com o ocupar-se, mas não exatamente como o que foi mostrado na primeira parte da canção. Ali era a correria da vida cotidiana; aqui é um estar ocupado consigo, como a busca por compreender-se como um ser de dimensão espiritual que compreende a continuidade da vida para além das questões materiais, ecoando Teilhard de Chardin quando este dizia que "Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais vivendo uma experiência humana".

Na sequência, esse tempo que não para se mostra como algo que provoca a ansiedade naqueles que só veem a dimensão material da existência, em um contraste com o trecho anterior. A antítese do tempo aliado/inimigo mortal vincula a canção à ideologia espiritualista que será enfatizada pelo par “quem sabe o que está do outro lado” / “quem acha que a morte é o final”. O verbo “saber” remete ao conceito de certeza da vida futura, amplamente utilizada nas obras de Allan Kardec, enquanto a dúvida à respeito do porquê da existência humana é representada pela forma verbal “acha”, o que também se vê no seguinte trecho de A Gênese:


A certeza da vida futura dá outro curso a suas ideias, outro objetivo a seus trabalhos; antes de ter essa certeza ele trabalha apenas para a vida atual; com tal certeza ele trabalha tendo em vista o futuro sem negligenciar o presente, porque sabe que seu futuro depende da direção melhor ou pior que der ao presente. (Cap. II, it. 3)


Na sequência temos:


Tempo é marcação, finito argumento de uma encarnação

Tempo é ficção, meridianos, uma simples convenção


Aqui vê-se novamente a ideia que associa a percepção da passagem do tempo à sucessão de acontecimentos, o que nos leva à convenções arbitrárias que definem e estabelecem uma visão coletiva dessa passagem. Mais uma vez encontra-se em A Gênese:


O tempo é apenas uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias; a eternidade não é suscetível de medida alguma, do ponto de vista da duração; para ela, não há começo, nem fim: tudo lhe é presente. Se séculos de séculos são menos que um segundo, relativamente à eternidade, que vem a ser a duração da vida humana?! (Cap. VI, it. 2)


A canção finaliza-se com o verso “Se você quer saber, tempo existe pra quem quer viver”, o que de certa maneira resume tudo o que foi dito ao longo de cada estrofe. Ao aproximar “tempo” e “vida”, a letra determina que ambos os vocábulos se igualam. Tempo e vida são portanto representantes da mesma dimensão humana, aquela que precisa ser fruída, aproveitada. O tempo existe quando vivemos a vida em plenitude, realizando nossas potencialidades e mirando um horizonte para além da dimensão material, seja quanto ao que consideramos ser “produtivo”, seja quanto à qualidade de vida que nos concedemos.

Glaucio Cardoso

Leia também:

01 - Canção da Alegria Cristã

02 - Cativar

03 - Flutuar

04 - Uma prece


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Sombras...


Pai,

eu volto a evocar o teu fantasma,

como se fosse possível

que te fizesses presente.

Eu volto a evocar tua partida

na vã tentativa de exorcizar

a presença de seu olhar

no espelho que me encara.

Volto a evocar você

nas dúvidas que me assaltam,

na busca por teus conselhos,

na procura por tua aprovação.

Eu te evoco a cada dia,

mesmo sabendo que nunca esteve ausente.

Glaucio Cardoso

09/11/2019


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Jesus na minha casa


 Acho que vou mudar os móveis de lugar,

Pra deixar a sala mais arejada.


Acho que vou lavar os banheiros

pra deixar tudo perfumado.


Acho melhor trocar os lençóis e as toalhas.

Acho uma receita nova

de um prato especial.

Acho um lugar perfeito pra uma rede

e pra soneca da tarde.


É preciso deixar toda a casa pronta

pra chegada de Jesus.


Mas Jesus não pode ser visita!

Jesus tem que ser de casa,

daqueles que abrem a geladeira,

se servem de suco.


Jesus tem que me dizer bom dia,

boa tarde,

boa noite.

Mais do que qualquer sofá

é ele quem me dá conforto,

sacia a fome,

refresca a alma,

embala o sono.

Não precisa de luxo,

nem de excesso,

só do essencial.


Então acho que não vou

me preocupar com móveis,

pratos

ou toalhas.


Acho que vou arrumar meus pensamentos.


Acho que vou cuidar da minha fala.


Acho boa ideia abrir as portas da morada interior

e dizer de peito aberto

e dizer de alma liberta:

Seja bem-vindo, Jesus!

Glaucio Cardoso

03/12/2020

sexta-feira, 28 de junho de 2024

Você sabe o que você canta? - 004

 – Analisando músicas espíritas –



Uma Prece
(OUVIR)

Willi de Barros Gonçalves

João Bosco de Carvalho


Uma categoria musical muito difundida nos meios religiosos é conhecida como “canção-prece”, que pode ser definida como a composição musical que busca emular esteticamente uma oração. Geralmente estas canções caracterizam-se pela presença de um eu lírico que se dirige a Deus, a Cristo, aos anjos ou aos espíritos superiores com um discurso no qual pede-lhes a intercessão ou em agradecimento por algo.

Dentre os exemplos do gênero encontrados em todo o cancioneiro espírita, destaco a composição de Willi de Barros e João Bosco de Carvalho:


Poderosa águia que há no alto do totem

Dá-me tuas asas, me ensina a voar

Cruzar os horizontes, vencer montes e mares

Com a luz do saber, pela virtude de amar


Com tua força tamanha

Oh, urso me ajude a derrubar

As barreiras da vida

Que eu venha a encontrar


E eu venho pedir a ti, oh, tartaruga

Que o totem está a sustentar

Dá-me tua certeza de um dia poder chegar


A ver-te nas asas da águia

Na força do urso

Em todas as coisas criadas por ti

Eleva minh’alma, me faz tão perfeito

Me leva a saber

Que estás dentro de mim


Oh, Pai nosso que estás nos céus

Santificado seja o teu nome

Em favor de todos nós.


A canção se abre com a referência a um tipo de monumento religioso mais comum do que parece: o totem, geralmente uma estrutura vertical na qual são entalhadas representações simbólicas de animais característicos dos lugares onde cada sociedade originária habitava e se desenvolveu.

O estudo das culturas totêmicas ocupou a mente de diversos pensadores, dentre os quais destacam-se Sigmund Freud, Émile Durkhein, Franz Boas e Claude Lévi-Strauss, cuja leitura recomendo para quem desejar aprofunda-se no assunto. De modo bastante superficial, direi que nas sociedades totêmicas há o entendimento de que animais como a águia, o corvo, o urso, o lobo, a tartaruga (apenas para mencionar alguns dos mais frequentes no totemismo das Américas) seriam representações dos ancestrais míticos dos homens.

Este conceito abre-se em inúmeros sentidos de interpretação. Se os animais são os ancestrais dos homens, então estes também são vistos como animais, ou em outras palavras, como parte da natureza. Seria assim uma forma de compreender que toda a criação faz parte de um todo único, e que tal consciência se faz necessária para que o ser humano possa viver em harmonia com o planeta. Lembro aqui de Aílton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) quando nos diz que o fato do homem ter perdido a capacidade de falar com as matas, com as montanhas e animais, esquecendo-se de que estes são seus parentes, está na raiz da destruição da natureza que hoje põe em risco a própria sobrevivência planetária.

O conhecimento totêmico da parentela entre homens e natureza foi também intuído pela emblemática figura de Francisco de Assis, que tratava tudo o que havia na natureza como irmãos, dando assim voz a uma espécie de totemismo cristão.

Pensemos nos símbolos totêmicos presentes na canção de Barros e Bosco, compreendendo a águia, o urso e a tartaruga em seu aspecto simbólico e arquetípico.

A águia, geralmente posta no topo dos totens, bem como outras aves específicas a cada comunidade, é aquela que vê mais longe e, por isso, possui uma visão do todo espacial. Representaria assim a razão, a estratégia, sendo também um sinônimo de coragem.

O urso é associado na canção à força. As sociedades xamânicas também o associam ao aprendizado (sim, você está pensando em Irmão Urso) e ao senso de maternidade.

A tartaruga costuma estar na base dos totens, uma vez que é um animal cujos pés estão sempre fincados ao chão. Representa a ancestralidade, o conhecimento acumulado ao longo do tempo.

Tais elementos, aparentemente não teriam qualquer relação com a filosofia espírita, uma vez que serão associados, em uma leitura superficial, a religiosidades ditas “primitivas” e portadoras de um fetichismo arraigado nas formas como culturas ancestrais se relacionam com o sagrado. No entanto, esta seria uma conclusão precipitada, errônea e possivelmente preconceituosa.

Tomando a águia, o urso e a tartaruga como ancestrais míticos dos homens, compreendendo-os como figuras arquetípicas, pensemos como eles são apresentados sob a ótica espírita na composição.

Dotada da racionalidade que a visão ampla lhe confere, a águia será representante da fé raciocinada a qual a espiritualidade nos convida. Esta fé gera a confiança de que todas as dificuldades da vida podem ser vencidas, o que dá aos homens a força para prosseguir na caminhada, tal qual um urso que aprende e se fortalece a cada passo. A paciência da tartaruga, firme na base de tudo, pode ser associada às palavras de Paulo de Tarso, que dirá ser a paciência um dos atributos do amor, sempre apontado pelos espíritos superiores como a base e o fundamento de toda a lei divina.

Assim, a composição de que nos ocupamos traduz o caráter universal dos ensinamentos da espiritualidade, presentes em todas as culturas, e finaliza demonstrando que os ensinamentos cristãos, representados pela apropriação que faz de versos do “Pai Nosso”, são uma das faces da relação dos homens com a espiritualidade.

Me ocorre também que, ao dialogar com o totemismo, a dupla Willi de Barros e João Bosco teve como referencial o aspecto do humano como parte da natureza, o que nos leva a representações poéticas dos quatro elementos: o ar representado pela águia; a terra configurada na presença imponente do urso; a água que flui no leito como a tartaruga flui no tempo; o fogo que desce dos céus, o Pentecostes ao qual o “Pai Nosso” evoca.

Glaucio Cardoso

LEIA TAMBÉM:

Flutuar

Cativar

Canção da Alegria Cristã


quarta-feira, 22 de maio de 2024

Conformismo


Se eu disser o que eles querem ouvir,

as portas vão se abrir para meu passar.

Bastará ser o que todos são,

repetir metodicamente,

mecanicamente,

o que os aceitos dizem

com a convicção ensaiada

que agrada e vira a chave.

Ter um lugar à mesa

e ser brindado como original

é apenas uma questão

de render-se à mesmice

travestida de personalidade.

Deixar de lado o que se é

e se tornar o esperado.

E a isso eu digo não.

Glaucio Cardoso

10/04/24

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Você sabe o que você canta? - 03

Analisando músicas espíritas –


Flutuar
(OUÇA)

Grupo Arte Nascente


    É preciso esclarecer que uma análise de um poema, de uma narrativa em prosa ou da letra de uma canção não se propõe a determinar o que “o autor quis dizer” com suas palavras, mas sim em expor e explorar o que aquele texto diz para os leitores, sendo que este dito necessariamente sofrerá mudanças de um leitor para outro. Nesta série de textos sobre algumas das músicas mais difundidas e conhecidas no movimento espírita brasileiro, meu esforço tem sido o de fazer análises que, ainda que calcadas em critérios pessoais, se mostrem como uma possível chave de leitura de cada canção, servindo assim como fundamento teórico para suscitar novas interpretações das canções enfocadas e, ao mesmo tempo, servir como um modelo viável para todo aquele que deseja se debruçar sobre estes objetos artísticos.

É com essa ideia que me acerco de uma canção que tem feito sucesso no movimento espírita há pouco mais de duas décadas e que tive a alegria de ver/ouvir em uma de suas primeiras audições públicas. Trata-se da música “Flutuar”, composição do Grupo Arte Nascente (GO). Existe um ar de simplicidade melódica e letrística que fez com que a mesma se torna-se uma espécie de hit instantâneo, difundindo-se rapidamente no movimento espírita. Vejamos a letra estrofe por estrofe.

Sim, eu vou lembrar

Dessa manhã

Sentir você chegar

Dou todo meu ser

Belo jardim

Pra você brotar

A letra começa pela afirmação de uma espera, a espera por alguém cuja chegada será tão impactante para o eu lírico que permanecerá na memória deste. Dois elementos simbólicos presentes nesta primeira estrofe são relevantes para a leitura que pretendo fazer da canção: a manhã e o jardim.

A manhã nos remete ao (re)começo de algo, pois reforça a ideia da luz que chega e espanta as trevas. É até mesmo uma visão renovada do velho clichê da noite como um símbolo para a obscuridade, a tristeza, a melancolia, espantado pelos raios de uma nova aurora. Essa luz que é indispensável para o crescimento das flores, levando naturalmente à imagem do jardim no qual o interlocutor ao qual o eu lírico se dirige terá espaço para nascer e se desenvolver.

Sei! Você nunca negou

Eu só vou te encontrar aqui

Dentro de mim

Sei! Só quero te dizer

Que o tempo não acabou

Voltei a te buscar

Na segunda estrofe o eu lírico permanece em diálogo com seu interlocutor, o que nos indica que a espera, indicada na primeira estrofe, se concretizou em sua chegada, ainda que esta pareça ser mais metafórica do que concreta, ou antes uma presença ainda virtual e possível, pois o eu se dirige a este outro como se sua presença fosse algo ainda em construção. E tal virtualidade nos leva a fazer a pergunta que provavelmente passa pela cabeça do leitor/ouvinte desde a primeira estrofe: quem o eu lírico aguarda? Minha hipótese de leitura para responder a tal questão passa exatamente por esta estrofe, motivo pelo qual não a mencionei quando pensamos sobre a estrofe anterior.

Os versos dois e três da segunda estrofe dizem que “Eu só vou te encontrar aqui / Dentro de mim”, o que me parece ser a chave de interpretação da música como uma afirmação de um processo de autoconhecimento por parte do eu lírico. Sim, a canção é um diálogo do ser, do eu, consigo mesmo, em um movimento de compreender que o indivíduo precisa acima de tudo vivenciar o amor próprio, a aceitação de si.

A partir do momento em que o indivíduo se (re)conecta com sua essência, está apto a realizar seu potencial de crescimento sob as luzes da nova manhã que chega para iluminar e fertilizar seu jardim interior, que já fora identificado como “todo o meu ser”.

O eu lírico ainda afirma que compreende o quanto demorou para chegar a esse momento, mas que o “tempo não acabou” e ele está de volta para buscar ser quem sempre foi, para realizar todo o seu potencial.

Me faça mais leve

Quero flutuar

No voo da vida

Venha me levar

No momento em que o eu se aceita, ele se liberta da culpa, por isso sente-se mais leve, com a ânsia de flutuar, isto é, de alcançar a realização plena de seu ser transcendente. Assim o eu concretiza o que está exposto na pergunta 919 de O livro dos espíritos e em sua resposta:

Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?

“Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo. [Grifos meus]

Assim, conhecendo-se a partir desse reencontro consigo, o ser humano representado pelo eu lírico da canção do GAN está apto a melhorar seu viver, pois passa a agir de acordo com sua essência original que ficou adormecida até que um amanhecer renovador o despertasse.

Glaucio Cardoso

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Uma Prece

Cativar

Canção da Alegria Cristã

quinta-feira, 21 de março de 2024

Entre chamas e cinzas: Moisés Alves por Alberto Pucheu

 

Uma tela escura com um contador marcando o tempo e uma voz interrompida pelo som de tambores, numa batucada que não deixa de lembrar os sons de uma fábrica.

Assim começa “moisés alves: o fogo que antecede as cinzas” (assim mesmo, todo em minúsculas), mais recente atrevimento fílmico do poeta e pesquisador Alberto Pucheu, que de tempos em tempos tem nos brindado com essa espécie de documentários situados entre o biográfico e o manifesto, mas sempre com a eleição da voz posta em poesia.

No melhor estilo de “uma câmera na mão e um ideia na cabeça”, do incontornável Glauber Rocha, Pucheu nos toma pelas mãos e nos apresenta o poeta Moisés Alves, autor de mangue (Martelo Casa Editorial), em um filme que expõe tanto a maturidade do cineasta, que alcança aqui um novo patamar como contador de histórias sem roteiros fechados, quanto a de um poeta que parece situar-se na convergência de múltiplos mundos.

Moisés, um nome que traz em si tanto tempo, um nome de patriarca (e, portanto, de ancestral) que liberta consciências e abre mares por onde os homens e mulheres desejosos de novos horizontes devem transitar.

O poeta nos entrega sua voz e suas memórias, ambas manifestando-se em versos portadores de uma visceralidade desconcertante. As lembranças da mãe, da avó e da vida tornam-se não a matéria-prima para a construção dos poemas-artefatos, mas o combustível para a queima transformadora da realidade temporal e passageira em algo mais perene, fogueira em cinzas, brasa e cinzas,, calor e cinzas, cores e cinzas.

A junção dos poemas, depoimentos e imagens cria uma atmosfera de transcendentalidade em nada semelhante ao estado contemplativo tão comumente associado à tradição judaico-cristão; é uma espécie de sagrado pulsante, vivo e atuante, um sagrado cujos templos e altares são os corpos que caminham sob o sol, as vozes que se erguem com a alegria de movimentar-se sobre a Terra.

Transitando organicamente de um poema a uma confissão, de uma imagem de celular a um depoimento capturado por uma lente profissional que assume o papel de olho clínico tanto do cineasta quanto do espectador, o filme se constrói dentro de uma espécie de tempo mítico que não vemos passar, encerrando-se com um pôr-de-sol que não representa um fim, mas um movimento cíclico no qual filme e poeta se situam.

Glaucio V. Cardoso



segunda-feira, 11 de março de 2024

Minha fala

Para Lucas da Paz

Eu não falo feito branco.
Eu não falo feito negro.
A minha fala traz
O couro de africanos
E as cordas de europeus.
Minha fala vibra
Guarani, bantu, latim,
Minha fala não tem uma língua
Ou tem tantas que nem sei.
Minha fala é do oriente
E canta no ocidente.
Minha fala é norma culta
Em colóquio com o popular.
Minha fala fala de mães, pais e avós.
Minha fala tem Torá e Alcorão.
Minha fala tem letra e tem só som.
Minha fala não é minha,
Mas me pertence e possui.
Minha fala é coletiva e é só minha,
Minha fala é ancestral
E se renova.
Minha fala não tem tempo,
Minha fala não tem sexo,
Minha fala não tem cor,
Minha fala tem história.

Glaucio Cardoso
07/03/2024