quinta-feira, 21 de março de 2024

Entre chamas e cinzas: Moisés Alves por Alberto Pucheu

 

Uma tela escura com um contador marcando o tempo e uma voz interrompida pelo som de tambores, numa batucada que não deixa de lembrar os sons de uma fábrica.

Assim começa “moisés alves: o fogo que antecede as cinzas” (assim mesmo, todo em minúsculas), mais recente atrevimento fílmico do poeta e pesquisador Alberto Pucheu, que de tempos em tempos tem nos brindado com essa espécie de documentários situados entre o biográfico e o manifesto, mas sempre com a eleição da voz posta em poesia.

No melhor estilo de “uma câmera na mão e um ideia na cabeça”, do incontornável Glauber Rocha, Pucheu nos toma pelas mãos e nos apresenta o poeta Moisés Alves, autor de mangue (Martelo Casa Editorial), em um filme que expõe tanto a maturidade do cineasta, que alcança aqui um novo patamar como contador de histórias sem roteiros fechados, quanto a de um poeta que parece situar-se na convergência de múltiplos mundos.

Moisés, um nome que traz em si tanto tempo, um nome de patriarca (e, portanto, de ancestral) que liberta consciências e abre mares por onde os homens e mulheres desejosos de novos horizontes devem transitar.

O poeta nos entrega sua voz e suas memórias, ambas manifestando-se em versos portadores de uma visceralidade desconcertante. As lembranças da mãe, da avó e da vida tornam-se não a matéria-prima para a construção dos poemas-artefatos, mas o combustível para a queima transformadora da realidade temporal e passageira em algo mais perene, fogueira em cinzas, brasa e cinzas,, calor e cinzas, cores e cinzas.

A junção dos poemas, depoimentos e imagens cria uma atmosfera de transcendentalidade em nada semelhante ao estado contemplativo tão comumente associado à tradição judaico-cristão; é uma espécie de sagrado pulsante, vivo e atuante, um sagrado cujos templos e altares são os corpos que caminham sob o sol, as vozes que se erguem com a alegria de movimentar-se sobre a Terra.

Transitando organicamente de um poema a uma confissão, de uma imagem de celular a um depoimento capturado por uma lente profissional que assume o papel de olho clínico tanto do cineasta quanto do espectador, o filme se constrói dentro de uma espécie de tempo mítico que não vemos passar, encerrando-se com um pôr-de-sol que não representa um fim, mas um movimento cíclico no qual filme e poeta se situam.

Glaucio V. Cardoso



Nenhum comentário:

Postar um comentário