sexta-feira, 28 de junho de 2024

Você sabe o que você canta? - 004

 – Analisando músicas espíritas –



Uma Prece
(OUVIR)

Willi de Barros Gonçalves

João Bosco de Carvalho


Uma categoria musical muito difundida nos meios religiosos é conhecida como “canção-prece”, que pode ser definida como a composição musical que busca emular esteticamente uma oração. Geralmente estas canções caracterizam-se pela presença de um eu lírico que se dirige a Deus, a Cristo, aos anjos ou aos espíritos superiores com um discurso no qual pede-lhes a intercessão ou em agradecimento por algo.

Dentre os exemplos do gênero encontrados em todo o cancioneiro espírita, destaco a composição de Willi de Barros e João Bosco de Carvalho:


Poderosa águia que há no alto do totem

Dá-me tuas asas, me ensina a voar

Cruzar os horizontes, vencer montes e mares

Com a luz do saber, pela virtude de amar


Com tua força tamanha

Oh, urso me ajude a derrubar

As barreiras da vida

Que eu venha a encontrar


E eu venho pedir a ti, oh, tartaruga

Que o totem está a sustentar

Dá-me tua certeza de um dia poder chegar


A ver-te nas asas da águia

Na força do urso

Em todas as coisas criadas por ti

Eleva minh’alma, me faz tão perfeito

Me leva a saber

Que estás dentro de mim


Oh, Pai nosso que estás nos céus

Santificado seja o teu nome

Em favor de todos nós.


A canção se abre com a referência a um tipo de monumento religioso mais comum do que parece: o totem, geralmente uma estrutura vertical na qual são entalhadas representações simbólicas de animais característicos dos lugares onde cada sociedade originária habitava e se desenvolveu.

O estudo das culturas totêmicas ocupou a mente de diversos pensadores, dentre os quais destacam-se Sigmund Freud, Émile Durkhein, Franz Boas e Claude Lévi-Strauss, cuja leitura recomendo para quem desejar aprofunda-se no assunto. De modo bastante superficial, direi que nas sociedades totêmicas há o entendimento de que animais como a águia, o corvo, o urso, o lobo, a tartaruga (apenas para mencionar alguns dos mais frequentes no totemismo das Américas) seriam representações dos ancestrais míticos dos homens.

Este conceito abre-se em inúmeros sentidos de interpretação. Se os animais são os ancestrais dos homens, então estes também são vistos como animais, ou em outras palavras, como parte da natureza. Seria assim uma forma de compreender que toda a criação faz parte de um todo único, e que tal consciência se faz necessária para que o ser humano possa viver em harmonia com o planeta. Lembro aqui de Aílton Krenak (Ideias para adiar o fim do mundo) quando nos diz que o fato do homem ter perdido a capacidade de falar com as matas, com as montanhas e animais, esquecendo-se de que estes são seus parentes, está na raiz da destruição da natureza que hoje põe em risco a própria sobrevivência planetária.

O conhecimento totêmico da parentela entre homens e natureza foi também intuído pela emblemática figura de Francisco de Assis, que tratava tudo o que havia na natureza como irmãos, dando assim voz a uma espécie de totemismo cristão.

Pensemos nos símbolos totêmicos presentes na canção de Barros e Bosco, compreendendo a águia, o urso e a tartaruga em seu aspecto simbólico e arquetípico.

A águia, geralmente posta no topo dos totens, bem como outras aves específicas a cada comunidade, é aquela que vê mais longe e, por isso, possui uma visão do todo espacial. Representaria assim a razão, a estratégia, sendo também um sinônimo de coragem.

O urso é associado na canção à força. As sociedades xamânicas também o associam ao aprendizado (sim, você está pensando em Irmão Urso) e ao senso de maternidade.

A tartaruga costuma estar na base dos totens, uma vez que é um animal cujos pés estão sempre fincados ao chão. Representa a ancestralidade, o conhecimento acumulado ao longo do tempo.

Tais elementos, aparentemente não teriam qualquer relação com a filosofia espírita, uma vez que serão associados, em uma leitura superficial, a religiosidades ditas “primitivas” e portadoras de um fetichismo arraigado nas formas como culturas ancestrais se relacionam com o sagrado. No entanto, esta seria uma conclusão precipitada, errônea e possivelmente preconceituosa.

Tomando a águia, o urso e a tartaruga como ancestrais míticos dos homens, compreendendo-os como figuras arquetípicas, pensemos como eles são apresentados sob a ótica espírita na composição.

Dotada da racionalidade que a visão ampla lhe confere, a águia será representante da fé raciocinada a qual a espiritualidade nos convida. Esta fé gera a confiança de que todas as dificuldades da vida podem ser vencidas, o que dá aos homens a força para prosseguir na caminhada, tal qual um urso que aprende e se fortalece a cada passo. A paciência da tartaruga, firme na base de tudo, pode ser associada às palavras de Paulo de Tarso, que dirá ser a paciência um dos atributos do amor, sempre apontado pelos espíritos superiores como a base e o fundamento de toda a lei divina.

Assim, a composição de que nos ocupamos traduz o caráter universal dos ensinamentos da espiritualidade, presentes em todas as culturas, e finaliza demonstrando que os ensinamentos cristãos, representados pela apropriação que faz de versos do “Pai Nosso”, são uma das faces da relação dos homens com a espiritualidade.

Me ocorre também que, ao dialogar com o totemismo, a dupla Willi de Barros e João Bosco teve como referencial o aspecto do humano como parte da natureza, o que nos leva a representações poéticas dos quatro elementos: o ar representado pela águia; a terra configurada na presença imponente do urso; a água que flui no leito como a tartaruga flui no tempo; o fogo que desce dos céus, o Pentecostes ao qual o “Pai Nosso” evoca.

Glaucio Cardoso

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