– Analisando músicas espíritas –
O Tempo (OUVIR)
Grupo Alma Sonora
Um dos critérios, talvez o principal, da escolha das canções que tenho analisado nesta série de textos é o de que preciso gostar delas em alguma medida. Pode não soar muito acadêmico, mas creiam quando digo que a maioria dos estudos na área de humanas possuem o critério do gosto pessoal em maior ou menor medida, embora nem sempre confessado.
Ainda me lembro da primeira vez em que ouvi o grupo Alma Sonora, de Curitiba-PA, cantando “O tempo”. Foi em uma das edições do Festival da Canção Espírita de Franca (FECEF). Quando a canção começou e fui acompanhando a letra pelo livrinho que a organização do evento distribui a cada edição, virei para meu amigo Anderson Daltro e falei emocionado: “Essa é uma das canções mais bonitas que já ouvi!”
O tempo é curto pra quem corre contra o tempo
O tempo é escasso pra quem não aperta o passo
O tempo passa devagar pra quem não tem com quem falar
O tempo quase não passa na vilinha de igreja e praça
A primeira parte da canção apresenta a temática que será predominante em toda ela: a relatividade do tempo a partir da percepção individual.
Note-se que os dois primeiros versos relacionam-se à mesma dimensão da realidade: a vida corrida que caracteriza a sociedade na qual nos encontramos mergulhados. É preciso estar sempre em movimento, ser produtivo, ser alguém que é útil para a sociedade. E quando sobra tempo para a vida?
O terceiro verso traz à tona um aspecto trágico decorrente daquilo que foi explorado nos dois versos anteriores: o sentimento de solidão. Se por um lado a vida corrida desta louca sociedade de consumo nos faz sentir que nunca temos tempo o suficiente, por outro essa mesma falta de tempo nos condena ao isolamento e assim vem a percepção de que, quando finalmente temos alguns momentos para descansar, somos assolados pelo silêncio. É a velhice que chega sem que realmente tenhamos criado laços; é o fim de semana vazio no qual buscamos nos ocupar com mais atividades para nos sentirmos úteis; é a impossibilidade do diálogo com os familiares para os quais somos ilustres desconhecidos.
No verso seguinte, vemos o contraste positivo a isso na imagem bucólica de uma vila perdida em algum lugar com o qual já sonhamos um dia, um lugar onde o tempo parece não passar, lembrando a “Cidadezinha qualquer” do poema de Drummond:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um
homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai
devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Essa vida que parece não passar é diferente daquele tempo estagnado que massacra aqueles que não têm com quem falar. Aqui, no verso em questão, atualiza-se o fugere urben que foi tão praticado pelos poetas neoclássicos do movimento que ficaria conhecido como Arcadismo.
O tempo voa, voa, voa, voa, pra quem não está à toa
Tempo é aliado pra quem sabe o que está do outro lado
O tempo voa, voa, voa, voa, e nunca vai parar
Tempo é inimigo mortal pra quem acha que a morte é o final
Aqui uma imagem clichê que associa a passagem do tempo ao voo. Essa sensação de que o tempo voa associa-se primeiro com o ocupar-se, mas não exatamente como o que foi mostrado na primeira parte da canção. Ali era a correria da vida cotidiana; aqui é um estar ocupado consigo, como a busca por compreender-se como um ser de dimensão espiritual que compreende a continuidade da vida para além das questões materiais, ecoando Teilhard de Chardin quando este dizia que "Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual. Somos seres espirituais vivendo uma experiência humana".
Na sequência, esse tempo que não para se mostra como algo que provoca a ansiedade naqueles que só veem a dimensão material da existência, em um contraste com o trecho anterior. A antítese do tempo aliado/inimigo mortal vincula a canção à ideologia espiritualista que será enfatizada pelo par “quem sabe o que está do outro lado” / “quem acha que a morte é o final”. O verbo “saber” remete ao conceito de certeza da vida futura, amplamente utilizada nas obras de Allan Kardec, enquanto a dúvida à respeito do porquê da existência humana é representada pela forma verbal “acha”, o que também se vê no seguinte trecho de A Gênese:
A certeza da vida futura dá outro curso a suas ideias, outro objetivo a seus trabalhos; antes de ter essa certeza ele trabalha apenas para a vida atual; com tal certeza ele trabalha tendo em vista o futuro sem negligenciar o presente, porque sabe que seu futuro depende da direção melhor ou pior que der ao presente. (Cap. II, it. 3)
Na sequência temos:
Tempo é marcação, finito argumento de uma encarnação
Tempo é ficção, meridianos, uma simples convenção
Aqui vê-se novamente a ideia que associa a percepção da passagem do tempo à sucessão de acontecimentos, o que nos leva à convenções arbitrárias que definem e estabelecem uma visão coletiva dessa passagem. Mais uma vez encontra-se em A Gênese:
O tempo é apenas uma medida relativa da sucessão das coisas transitórias; a eternidade não é suscetível de medida alguma, do ponto de vista da duração; para ela, não há começo, nem fim: tudo lhe é presente. Se séculos de séculos são menos que um segundo, relativamente à eternidade, que vem a ser a duração da vida humana?! (Cap. VI, it. 2)
A canção finaliza-se com o verso “Se você quer saber, tempo existe pra quem quer viver”, o que de certa maneira resume tudo o que foi dito ao longo de cada estrofe. Ao aproximar “tempo” e “vida”, a letra determina que ambos os vocábulos se igualam. Tempo e vida são portanto representantes da mesma dimensão humana, aquela que precisa ser fruída, aproveitada. O tempo existe quando vivemos a vida em plenitude, realizando nossas potencialidades e mirando um horizonte para além da dimensão material, seja quanto ao que consideramos ser “produtivo”, seja quanto à qualidade de vida que nos concedemos.
Glaucio Cardoso
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