Sempre considerei que comprar livros fosse um processo solitário e estritamente pessoal. Afinal de contas, quando saio para comprar roupas estou de certa maneira me inserindo em um padrão que se encaixa no público alvo. Se a compra a ser feita for a de um CD, é bem provável que se busque um que vá ao encontro do chamado gosto popular ou da cultura de massas. Até mesmo quando estamos escolhendo móveis para nossas casas tendemos a seguir tendências da época. Com o livro isto não acontece.
Deixemos de fora os best-sellers instantâneos, fabricados para levar às massas um tipo específico de leitura que também está em acorde com as tendências de um mercado em expansão. Atenho-me ao livro que é comprado quase que por acaso, aquele que ao olharmos na vitrine ou na prateleira parece chamar-nos a desvendá-lo. Isto sim é o supremo ato de liberdade que, a meu ver, somente a compra de livros nos proporciona. Claro que se pode alegar que nem sempre compramos CD’s, roupas ou móveis impelidos por tendências, e nisto também eu me enquadro, mas quando compramos estas coisas costumamos entrar nas lojas a sua procura, raramente nos deixamos escolher pelos produtos, pois é isto o que eles são: PRODUTOS. Com o livro é diferente.
Considero-me um Leitor Andarilho e explico que sentido dou a esta expressão. Várias vezes me acontece sair com o seguinte pensamento: “Hoje comprarei pelo menos um livro”. Qual livro? Não importa, ele me escolherá no momento em que eu passar por ele. Tenho a certeza de que o que eu estiver procurando, embora ainda seja ignorado por mim, irá lançar-se à minha frente tão logo me aviste. Neste processo, caminho por livrarias e sebos, entro, olho, folheio e continuo andando até o momento em que serei escolhido por aquele livro que tem algo a me dizer naquele momento (ou mais tarde, às vezes anos depois da compra quando finalmente o ler) que será fundamental e necessário, até mesmo imprescindível para minha pessoa, para o meu eu interior, para o leitor amador que me mantenho e o leitor profissional que me proponho a ser.
Eis porque sempre julguei tal processo muito pessoal e solitário. É pessoal, pois meus critérios não podem ser ensinados e aplicados a nenhum outro leitor. São meus e se vinculam aos meus gostos pessoais, minha disposição física e mental em percorrer livrarias cheias ou sebos empoeirados, minhas idiossincrasias determinantes do que me parece bom ou não, minha predisposição em arriscar uma leitura nova ou manter-me fiel aos autores de sempre e diversos outros fatores que não cabem numa lista porque não são verbalizados nem raciocinados, apenas sentidos e vividos.
A solidão é oriunda disso. Dificilmente encontro gente com disposição para me acompanhar nessas peregrinações. É preciso tempo, é preciso fôlego, é preciso paciência e um bom par de sapatos macios e confortáveis. Também é preciso um certo espírito aventureiro e mais do que tudo é imprescindível a paixão pela descoberta. Paixão que me faz retirar diversos livros de uma prateleira para no final sair com apenas um debaixo do braço ou que me faz bater os olhos em um título entre centenas de outros, retirá-lo e comprá-lo. Em qualquer dos casos é a paixão que me permite ser escolhido por um livro.
E me aconteceu agora uma surpresa.
Passando pelo centro do Rio de Janeiro, vejo na vitrine de uma livraria na qual compro há muitos anos um anúncio dantesco: “Entrega das chaves em três dias” seguido de “50% de desconto em toda a loja”. O que para muitos seria apenas uma excelente oportunidade de um bom negócio, para mim foi um paradoxo. Como leitor voraz, adoro comprar livros e se puder encontrá-los a um bom preço sinto-me às portas do Paraíso. Como leitor voraz (ainda), lamento profundamente o fechamento de uma livraria, pois todos perdemos com isto.
Parei com minha filha e esposa (que por acaso dará a luz dali a três dias) diante da vitrine e resolvi entrar. A solidão cresceu dentro de mim ao ver os espaços já claros nas prateleiras e as mesas com pilhas e mais pilhas de livros em promoção. O lugar parecia já impregnado de um vazio que estava também em mim, “isolado na poltrona de minha melancolia” para parafrasear Fernando Pessoa, sentindo-me também parte daquela maldita contagem regressiva que só me dava três dias.
Eis que um livro olha por sobre os ombros dos demais e me escolhe, como a desafiar-me a fugir da solidão de um leitor já impregnado da poeira de milhares de capas, já soterrado por tantas páginas que por vezes não são abertas, mas que sempre estarão lá a dizer-me quem sou. Tomo o volume nas mãos, mas o sentimento de solidão e de derrota permanecem mesmo estando eu inclinado a comprá-lo.
Nisto olho para uma grande mesa no centro da loja e vejo minha filha de seis anos com dois livros nas mãos. Ela folheia um e outro e depois de algum tempo diz com resolução que não encontro nem mesmo em mim: “É este que vou querer! Vou levar e ler pra minha irmã quando ela nascer!”. Algo estremece dentro de mim. Olho a meu redor e não vejo mais os espaços em branco vazios nas prateleiras, vislumbro todos os antigos ocupantes daquelas estantes que agora ocupam outros lugares em um número incalculável de casas e cabeças.
Saímos os três da livraria agonizante. Na bolsa um grosso volume de literatura comparada e um belo texto ilustrado com figuras. Na rua o sol brilha forte, as pessoas andam apressadas, carros buzinam. Apenas nós três caminhamos lentamente. Já não me sinto tão solitário. Olho para minha filha e digo intimamente: “Obrigado”.
(28/06/2010)
O Bardo, eu, ficou emocionado com esse excelente texto que sentiu sim com o coração o que é um livro e sua importância, e você caríssimo mestre sentiu as maiores emoções que um homem poderia sentir: a gratidão plena e orgulho de ser pai. Eu penso comigo, "quantos livros ainda me esperam" e ancioso guardo o desejo que consumilos, não como produtos, mas como "livros".
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