domingo, 10 de março de 2024

Você sabe o que você canta? - 02

 


Você sabe o que você canta?

Analisando músicas espíritas –

Cativar (OUÇA)

Autoria desconhecida

Glaucio Cardoso

Um dia ainda espero que alguém descubra como uma versão de “Tous les garçons et les files” (da francesa Françoise Hardy, gravada em 1962) se tornou uma das mais populares canções do movimento espírita brasileiro. De autoria desconhecida, a música “Cativar” tem sido presença constante nos encontros espíritas desde que me entendo por gente, ou pelo menos desde 1988, quando comecei a frequentar as reuniões de mocidade e os eventos. Creio não ser exagero dizer que todo espírita brasileiro conhece a singela canção, cuja letra, com algumas nuances de uma gravação para outra, é a seguinte:


Uma palavra tão linda

Já quase esquecida me faz recordar

Contendo sete letrinhas e

Todas juntinhas se ler cativar


Cativar é amar
É também carregar
Um pouquinho da dor
Que alguém tem que levar


Cativou disse alguém
Laços fortes criou
Responsável tu és
Pelo que cativou


Num deserto tão só
Entre homens também
Vou tentar cativar
Viver perto de alguém

Seja lá quem fez a letra, é bastante claro que se trata de uma tradução para a linguagem poética do diálogo entre o Pequeno Príncipe e a Raposa, personagens do inesquecível livro de Antoine de Saint-Exúpèry. Se você é das poucas pessoas no mundo que não leram a obra, pare este texto agora e vá ao livro, depois volte aqui.

No diálogo entre a Raposa e o Principezinho, este convida aquela para brincar, pois estava triste após haver descoberto que sua Rosa, a qual ele considerava uma flor única em todo o universo, era apenas uma rosa comum, igual a milhares de outras rosas existentes na Terra. É quando a Raposa responde:

- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. não me cativaram ainda.

[…]

- […]. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?

- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços…"

- Criar laços?

- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…

Note-se que as estrofes 1 e 3 da canção se encontram inteiras nesse trecho do diálogo, com a explicação de que o ato de cativar é algo antigo, já quase esquecido, e que pode ser entendido pela criação de laços. Mas por que a palavra está esquecida de acordo com a canção? Para compreender, voltemos ao livro.

O Pequeno Príncipe deixou seu planetinha B-612 para instruir-se e tentar assim compreender a dificuldade que tinha em relacionar-se com a Rosa. Em suas viagens pelo espaço antes de chegar à Terra, o menino encontra-se com personagens que representam arquétipos da sociedade humana: o Rei e o Homem de Negócios simbolizam a sociedade mercadológica que se equilibra entra a manutenção do status quo e o lucro com essa condição; o Geógrafo e o Acendedor de Lampiões, ocupados um em catalogar tudo o que existe, o outro em cumprir uma tarefa inútil sem questionar, ambos apartados da vivência real da existência; o Bêbado e o Vaidoso, dois escapistas que negam a realidade pela bebida e pelo culto a si mesmo. No fim das contas, são todos personagens centrados em seus papéis sociais, tanto que não possuem nome, são apenas rótulos, e por isso NÃO CRIAM LAÇOS. Eis o motivo pelo qual a palavra “cativar” é quase esquecida segundo a letra da canção.

A quarta estrofe da música traz à tona um personagem fundamental no livro: a serpente. Embora muitas vezes seja interpretada como símbolo da falsidade, uma figura traiçoeira, é a serpente quem abre os olhos do Pequeno Príncipe para a realidade de que os homens vivem isolados, como nesse trecho:

Onde estão os homens? repetiu enfim o principezinho. A gente está um pouco só no deserto.

- Entre os homens também, disse a serpente.

O que se repete nos versos “Num deserto tão só / Entre homens também”; a linha melódica da canção provoca uma ambiguidade que faz com que os ouvintes entendam que o segundo verso é aqui introdutório do terceiro, quando na realidade é um complemento do primeiro verso. Aliás, este segundo verso aparece por vezes como “Entre homens de bem”, o que parece um tanto incoerente dentro do conjunto da canção, motivo pelo qual descartei essa versão em minhas observações.

Desta forma a letra nos indica que o ato de cativar, de criar laços, é acima de tudo um processo íntimo e pessoal que reverbera no outro. Em outras palavras, ao indivíduo que cativa o outro precisa em primeiro lugar ter aprendido a cativar a sim mesmo, pois assim ele entende a responsabilidade que é entrar na vida de alguém, pois, como dirá a raposa, “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”, conceito que se encontra em praticamente toda a música.

Ainda sobre a imagem do deserto, não se pode ignorar o papel fundamental que esse lugar possui no livro de Saint-Exúpèry. O Piloto narrador do livro encontra o principezinho no deserto; é no deserto que o menino inicia seu aprendizado com a serpente e é do deserto que ele partirá de volta para casa.

O que torna belo o deserto, disse o principezinho, é que ele esconde um poço nalgum lugar.”

Estar no deserto, ou seja, despido de convenções sociais, em contato consigo e com a imensidão a ser conhecida e preenchida é o caminho para o autoconhecimento e talvez por isso o deserto esteja presente em tantas narrativas da mitologia mundial, incluindo as narrativas cristãs.

Há hoje no movimento espírita uma tendência a rejeitar canções feitas com o aproveitamento de melodias alheias, as chamadas versões. O argumento é de que uma melodia “mundana” ao ser entoada no ambiente espírita poderia levar as pessoas a se lembrarem de momentos e ambientes de desequilíbrio em que as músicas originais foram cantadas, acarretando assim uma quebra do padrão vibratório.

Embora eu entenda e até concorde que isso é possível, não posso deixar de pensar que o inverso também é possível, que podemos associar as letras espíritas de modo indelével à melodia original, a tal ponto que não mais ouviremos “Tous les garçons et les files” sem lembrarmos de uma roda de amigos onde alguém empunha um violão e todos cantamos alegremente que “Cativar é amar...”


Um comentário:

  1. Muito bom o texto. Notadamente fruto de um estudo mais aprofundado e não apenas de uma busca de google. Obrigado meu amigo Gláucio!

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