Eu sempre fui fascinado por histórias de ficção
científica pelo tanto de possibilidades que elas nos apontam. Dentro do universo
da FC há um tema que fascina até mesmo os próprios cientistas: as viagens no
tempo. A possibilidade do deslocamento temporal tem ocupado espaço primordial
em livros e em filmes já há um bom tempo. Mas qual teria sido a primeira obra
literária sobre o assunto e que aspectos extra-literários podemos sacar da
mesma? Será este o pontapé inicial deste meu texto.
Temos em A
Máquina do Tempo (1895), de H. G. Wells, um exemplo fascinante não só de
uma excelente obra literária como também de como a maneira de ver do
historiador pode interferir em sua forma de escrever/contar/entender seu objeto
de estudo. Mas antes de entrar na análise do livro em si, deixe-me expor uma pequena
ideia para melhor me fazer entender.
É aceito que quando uma pessoa lê um livro qualquer,
suas experiências influem na sua compreensão do que está lendo; sendo assim um
mesmo livro poderá ser compreendido de formas diferentes por pessoas diferentes
em épocas diferentes, caracterizando o ato de leitura também como um ato de
escrita.
Da mesma forma se dá com o historiador: ao estudar um
livro de notas da Idade Média, um quadro renascentista ou a forma de
distribuição dos cômodos de uma casa da Grécia Clássica, ele estará “lendo” a
história, dando-lhe sua própria interpretação que pode, assim como a leitura de
um livro, seguir parâmetros já estabelecidos por outros ou dirigir-se por
caminhos quase completamente novos, digo “quase” porque qualquer que seja sua
interpretação própria, sempre terá de haver um ou mais pontos de referência
para o historiador.
É possível perceber na obra de H. G. Wells alguns
exemplos do que estou propondo: o Viajante do Tempo, após os primeiros contatos
com o mundo do ano 802.701, começa a criar conjecturas a respeito de como a
sociedade teria chegado aquele ponto, conjecturas estas que modificam-se e/ou
complementam-se gradativamente à medida que ele se vê diante de dados novos.
Entretanto, suas interpretações do que vê e descobre estão sempre
“contaminadas” pelos conceitos existentes nos fins do século XIX, alguns
exemplos:
·
Ao observar a vida coletiva, desprovida de moradias
individuais e de vestes especificas para cada indivíduo, o Viajante do Tempo
pensa: “Comunismo” (Cap. 5, p.39); numa clara alusão ao que se tinha por
socialismo na época de Wells.
·
Olhando mais atentamente para as compleições físicas
dos Elois e notando a grande semelhança entre homens e mulheres, o Viajante
chega à conclusão de que, com o fim das dificuldades do homem, a robustez era
desnecessária, gerando-se daí o declínio da humanidade. É aqui que o narrador
diz: "Pela primeira vez comecei a
compreender uma estranha conseqüência dos esforços sociais em que hoje
estamos empenhados."(Cap. 5, p.41) [grifo meu].
·
É possível
notar que o Viajante do Tempo tem uma preocupação em entender a história; para
ele "os problemas desse mundo
precisavam ser aclarados"(Cap. 7, p.55). É a mesma preocupação de um
historiador, que pretende encontrar respostas que preencham as lacunas
existentes no que já se conta na história.
·
Seu primeiro contato com um Morlock faz com que ele
reformule uma vez mais suas hipóteses, e à medida que conhece mais e mais a
época na qual foi parar estas hipóteses também se modificam.
Um leitor mais
atento poderá captar nestes e em outro trechos do livro de Wells, verdadeiras
descrições de sua época, ideologias políticas, projetos sociais e até mesmo
situações, como no trecho abaixo:
Afinal de
contas, as condições sanitárias e a agricultura de hoje estão ainda numa fase
rudimentar. A ciência de nosso tempo atacou apenas uma faixa insignificante no
campo doenças humanas, mas ainda ela continua a desenvolver-se com firmeza e
obstinação. A agricultura e a horticultura destroem uma erva daninha aqui e
ali, e cultivam tão-só uma vintena de plantas úteis, deixando que a grande
maioria dos vegetais lute como puder para encontrar o equilíbrio natural.
Aperfeiçoamos nossas plantas e animais favoritos - e como são poucos! - gradativamente, praticando a criação e o cultivo seletivos: hoje um
pêssego melhor, uma uva sem caroço, amanhã uma variedade de flor mais bela e
mais perfumada, ou uma espécie de gado mais produtivo. Esse aperfeiçoamento é
desenvolvido aos poucos, porque nossos conhecimentos são limitados e não
sabemos ao certo o que desejamos. Por sua vez, a Natureza mostra-se tímida e
lenta em nossas mãos inábeis. Algum dia, tudo isso estará mais bem organizado;
e cada vez mais. Essa é a direção da corrente, apesar dos redemoinhos. O mundo
inteiro será instruído, inteligente e cooperativo. A Natureza será subjugada
numa progressão cada vez mais veloz. Por fim, reajustaremos o equilíbrio da
vida animal e vegetal para que se adapte às necessidades humanas. (Cap. 5,
p. 41-2)
Temos aí não apenas um retrato da estrutura agrícola e
das relações do homem com a Natureza no século XIX, mas também as expectativas
que esta estrutura de relações abria
quanto ao futuro.
Percebe-se um ponto interessante em suas hipóteses a
respeito das relações entre Elois e Morlocks: na primeira, os Morlocks são
tomados como a classe subalterna (porque subterrânea) que deve subserviência
aos Elois; na segunda (a “real”), os Elois são cevados pelos Morlocks, estes
sendo a classe verdadeiramente dominante. A humanidade dividira-se não mais em
senhores e servos, mas em criadores e “gado”.
Eis aqui o ponto interessante ao qual me referi no
parágrafo anterior: apesar de tremendamente díspares entre si, as duas
hipóteses são figuradas pelo Viajante do Tempo como resultado de um mesmo ponto
de partida, o da exploração da classe operária e sua conseqüente desumanização,
uma preocupação já existente na época em que o livro foi escrito e que continua
atual.
Toda obra literária (e cinematográfica) pode conter
elementos que, futuramente, servirão de "atalhos" para se
compreender, ainda que sutilmente, o funcionamento da sociedade na época e
lugar em que foi escrita (ou filmada). Mesmo um romance que se passe no século
XII, mas que foi escrito no século XX, conterá elementos inerentes ao seu
século de origem, elementos estes que interferem na maneira como o romance será
contado, pois tendem a estabelecer um ponto de vista; é o caso, por exemplo, de
O Nome da Rosa de Umberto Eco: a
trama se desenrola na Idade Média e torna possível um certo conhecimento de
alguns costumes da época, porém o próprio texto recebe as influências
(inclusive estilísticas) do século em que foi escrito. No cinema podemos citar
centenas de filmes, de épicos, como Ben-Hur,
a filmes mais recentes, como em Resgate
do Soldado Ryan; o primeiro apresenta o velho maniqueísmo "do herói
contra o vilão" (o que não tira suas qualidades de "filmaço"); o
segundo mostra a guerra do ponto de vista americano com o mesmo maniqueísmo do
"bem contra o mal" (comentário idêntico ao anterior).
Da mesma forma um livro cuja trama se passa no futuro
terá seu texto impregnado pela época na qual foi escrito, as situações do
presente gerando as perspectivas do futuro; bons exemplos são livros como Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), Um Estranho Numa Terra Estranha (Robert
A. Heinlein) e o próprio A Máquina do
Tempo de Wells, além de filmes como O
Show de Trumam, com Jim Carrey, e A
Última Esperança da Terra, com Charlton Heston, inspirado livremente no
livro de Richard Matheson I am a legend,
que mais tarde foi levado novamente aos cinemas com Will Smith.
Pode-se concluir que na literatura a história pode ser
apresentada e encontrada de forma direta ou indireta, sua confirmação pode
surgi até mesmo de sua própria negação, bastando, para tanto, uma leitura
atenta e despojada de ideias pré-concebidas.
Volto então ao questionamento inicial: Não seria o
historiador um leitor, em primeiro lugar? Prefiro concluir que SIM, que ele
"lê a história" da mesma forma que se lê um livro e que, ao escrever
sobre a história ele desempenha o mesmo papel de um romancista, passando para o
papel aquilo que ele considera importante e relevante, fazendo, portanto, sua
leitura do mundo.
LITERATURA & HISTÓRIA: dois conceitos
independentes e ao mesmo tempo indissociáveis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WELLS, H. G. A Máquina do Tempo (The Time Machine).
Trad. de Fausto Cunha. 20 ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1983.
Olá Glaúcio!
ResponderExcluirLendo seu texto, me lembrei de um livro de ficção, de contos, "Superbrinquedos, duram o verão todo", de Brian Aloiss. Foi num dos contos do livro que Spilberg se baseou para fazer o filme Inteligência artificial.
Nos encontramos no encontro de arte espírita de Fortaleza, e lá ficamos de trocar informações, vou enviar detalhes por e-mail, mas tenho um clog de contos, http://linhasdoamanhecer.blogspot.com.br/ depois passe por lá. Um abraço Gustavo