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quarta-feira, 9 de março de 2022

Memórias de um amante da poesia - 02

 

Primeiros livros

Gosto de lembrar de meus dois primeiros livros de poesia. Quando falo nos meus dois primeiros livros de poesia, estou falando de dois tipos diferentes e ainda assim semelhantes: o primeiro que li e o primeiro que escrevi.


Não sei quando foi que li
Garimpo (1989), de João Prado, mas lembro que foi o primeiro livro só de poemas que tive (os de escola não contam) e que devorei em poucas horas e pelo resto da vida.

Ali descobri que a poesia podia, entre outras coisas, falar do passado e do futuro, mesmo quando parecia pisar o agora. Vi o poeta lembrar da figura de seu pai, falar dos filhos e da amada. E descobri que era possível manter a esperança e o otimismo, mesmo diante de tantas dificuldades, como no poema “Recado”:


Escuta o recado

que eu trago guardado

no fundo do peito:

não busque esperanças

no fundo de um copo

nem ponhas no mundo

profundos defeitos.

[…]

Também entendi que era preciso nos livrar dos preconceitos que insistimos em cultivar, como quando o poeta me levou a ver a favela como espaço de alegria, vida e resistência:


Quando se fala em favela

tem muita gente que pensa

que favela é só muamba,

malandro, escola de samba.

[…]

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender

que a gente que sobe o morro

carregando lata d’água

tem raça pra batucar

na lata, quando descer.

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender

que um barraco de madeira

é bastante pra viver.

Vai doutor, vai na favela,

vai olhar pela janela

de um barraco o que é viver.

Vai na favela doutor,

vai na favela aprender.

Às vezes sinto que nunca terminei de ler o Garimpo, pois cada novo livro de poemas que inicio a leitura parece existir à sombra dele, como se eu buscasse encontrar em cada um o mesmo encantamento que o livro de João Prado me provocou. Alguns chegam bem perto; outros passam longe; nenhum se lhe iguala ou supera.

Meu outro primeiro livro, Enquanto Clara dormia (2011), nasceu meio que por acaso. Eu estava vivenciando a alegria eufórica do nascimento de minha filha caçula e me peguei organizando poemas que vinha escrevendo a algum tempo.


Por força da profissão, eu tinha consciência de que muitos autores renegam seus livros de estreia após alguns anos; por isso quis fazer algo que pudesse permanecer como algo relevante em minha trajetória na escrita. Descartei muitos poemas e reescrevi outros tantos.

Para evitar a armadilha de que a influência de meu autor predileto se fizesse muito óbvia, evitei aqueles poemas nos quais emulava seu estilo de escrita.

Passados dez anos, noto que nem sempre alcancei meus objetivos neste livro, mas, ainda assim, me orgulho muito do que há nele, como o prefácio assinado pelo meu querido poeta João Prado, ou o poema “E se for…”, que já serviu até para campanhas em defesa da vida, ou ainda “Prece de um filho”, onde me permiti romper com meus próprios paradigmas e escrevi o mais religioso de meus textos ao rogar “Senhor, tende misericórdia das putas…”.

Mas o que mais me encanta neste livro ainda hoje é seu último poema, que escrevi para passar o luto pela partida do meu pai e que foi o poema que fez com que pela primeira vez me chamassem de POETA!

O Mundo e Ele

Ele ficava feliz

E o mundo todo o imitava;

Quando ele acordava bem humorado

O dia amanhecia mais bonito;

Se os pássaros cantavam da manhã até a tarde

Era por ele ter passado o dia assobiando.

Ele respirava fundo num sorriso

E a brisa corria suave e amena.

Quando à tarde ele se espreguiçava com satisfação

As estrelas sabiam que era hora de aparecer.

E se ele ficava pensativo

O mundo se enchia de filosofia.

Um dia ele me olhou nos olhos

E eu me vi todo nesse olhar.

E quando seus olhos se fecharam

A noite se fez completa,

As estrelas rolaram como lágrimas do firmamento,

E as nuvens cobriram todo o céu

E apenas uma janela se abriu

Para o sol iluminar seu leito.

E naqueles olhos fechados,

Sonhadores de sonhos nunca sonhados,

Senti-me um adulto acordando...

Hoje, o sol ainda brilha,

As estrelas aparecem de novo,

Há dias tão belos quanto os de antes

E os pássaros recordam velhas canções

Isso me faz saber mais do que acreditar

Que ele continua a cantar,

A sorrir,

A pensar,

A viver.

Para uns ele era um amigo,

Outros o chamavam de irmão,

De alguém ele foi o filho,

De um outro alguém foi coração.

Mas se de mim quiserem saber

Eu direi simplesmente:

Ele era meu Pai.”


Glaucio Cardoso

Março de 2022

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Memórias de um amante da poesia - 01



O primeiro encontro



Eu tinha uns oito anos de idade. Meus pais me levaram a um evento beneficente na casa espírita que eles já frequentavam há alguns anos, desde que se mudaram de Nova Iguaçu, vindo antes de Irajá, para Mesquita (RJ). Talvez aqui eu deva fazer uma breve explicação sobre o evento e o local em que se realizava.

Ao longo dos anos, as casas espíritas (e aqui falo daquelas de orientação kardecista, popularmente chamadas de “centros de mesa branca”) sempre realizaram eventos para arrecadação de fundos que servissem para custeio de suas próprias atividades e/ou aquisição de mantimentos que pudessem ser distribuídos para pessoas em situação de pobreza extrema.

A tônica de muitos desses eventos  acabou por fundamentar uma fórmula que até hoje permanece no movimento espírita brasileiro: a combinação entre arte e comida. Creio poder afirmar que não há no Brasil um só espírita com mais de trinta anos de idade que nunca tenha participado de um “Chá fraterno”, “Lanche fraterno”, “Show com Chá” ou outros nomes para o mesmo tipo de evento.

Mas voltemos àquela tarde por volta de 1984.

Eu estava sentado na primeira fileira de cadeiras junto com outras crianças. Agora não tenho certeza se eu estava mesmo sentado na cadeira, talvez estivesse sentado no chão. Isso não importa para uma rememoração, mas a dúvida é também a morada do poético.

Eu estava sentado. E um homem subiu ao palco. Eu estava sentado vendo um homem subir ao palco que nem era exatamente um palco, apenas uma parte mais alta do salão e que servia de palco. E o homem subiu e falou. E quando ele falou, tudo desapareceu.


Eu não lembro das músicas que cantaram naquele dia; não lembro se houve alguma representação teatral; não lembro qual foi o lanche que serviram. Não lembro de nada.

Mas lembro que um homem falou.

De repente parecia que o mundo havia parado. Lembro claramente que ele começou a falar “A rua que eu moro…” e eu quis viver naquela rua, mais do que isso: eu queria ser aquela rua. Nunca tinha visto palavras ditas de tal modo. O que eu via naquele espaço não se parecia com nada do que eu já tivesse visto e ouvido na minha [então] curta existência.

E tudo porque um homem falou. Aquele homem, que mais tarde se tornaria meu padrinho na escrita e que assumiria um papel fundamental na minha caminhada, era o poeta João Prado.

No caminho para casa, eu tinha um monte de perguntas na cabeça. E como toda criança, resolvi perguntar para aquela fonte de conhecimento inesgotável, aquele que tinha resposta para todas as perguntas.

- Pai, o que era aquilo que aquele moço falou?

Meu pai não teve muito estudo. Tendo de trabalhar desde cedo, só conseguiu concluir o antigo 1º grau em um supletivo oferecido pela instituição na qual trabalhava, a PMERJ. Mas meu pai tinha um segredo: uma mente de inesgotável curiosidade. Sempre lendo, sempre pensando.

- Aquilo, meu filho, é POESIA!

- E o que é poesia?

- Poesia é uma coisa que todo mundo conhece, mas tem gente que pensa que esqueceu.

Às vezes fico na dúvida se ele realmente respondeu isso, mas é assim que me lembro e é assim que escolhi contar para as pessoas.

E foi assim que, aos 8 anos de idade, em uma tarde-noite de um fim de semana qualquer por volta de 1984, tendo sido apresentado à poesia por João Prado e pelo seu Nivaldo Cardoso, que eu descobri o que eu queria fazer pelo resto da minha vida.

Mais tarde, eu começaria a dizer poemas de diversos autores, inclusive do João Prado. E teve aquela vez em que pela primeira vez o próprio João me convidou para fazer um sarau com ele. Mas isso é outra memória.


Glaucio Cardoso - 24/11/2021