O ano de 1930 será marcado pelo lançamento do primeiro livro daquele que seria um dos mais festejados autores brasileiros de todos os tempos. Estamos falando da obra Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade (1902-87). No octogésimo aniversário de sua publicação, somos levados a (re)visitar suas páginas, seja pelo deleite intelectual oriundo da apreciação da poética do mineiro de Itabira, seja em busca de um algo mais, um poema que nos tenha passado despercebido entre inúmeras outras peças literárias de igual valor histórico e/ou literário.
Nesta busca pelo novo tornado clássico deparo-me com “Balada do amor através das idades”[1]:
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles
espirituoso e devasso,
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.
No momento mesmo em que o releio sinto uma irresistível necessidade de dividi-lo com outros, de pensá-lo, de analisá-lo, para de alguma forma torná-lo um pouco minha propriedade. Chego não a uma, mas a duas possibilidades de leitura: a Metalinguística e a Metafísica.
Convém avisar que ambas as vias de leitura apresentadas a seguir mereceriam maiores considerações para que fossem desenvolvidas de forma adequada. Por me parecer a menos comum, opto pelo desenvolvimento da segunda sem pretendê-la absoluta, pois como assinala Luiz Costa Lima[2] “A obrigação do crítico está toda em não converter (...) a leitura possível que extrai e escolhe entre outras tantas, em arbitrariedade”.
A Leitura Metalinguística toma como base a menção, no penúltimo verso do poema, ao mundo do cinema e lendo-o como uma referência papel formador da própria arte na vida do eu lírico que através dos anos de sua vida, desde a infância até a maturidade, tem o sentimento amoroso compreendido pela ótica correspondente ao tipo de filme que mais agradaria a este eu lírico de acordo com seu grau de maturidade, elemento determinante na escolha e na apreciação da arte. A palavra idade está aqui empregada em seu sentido cronológico referente aos anos que compõem a vida de um indivíduo. É uma leitura, aliás, muito interessante por demonstrar o quanto o eu subjetivo do ser humano é afetado pela arte, cuja influência molda-lhe inclusive a forma de sentir e de representar-se no mundo, representação esta que passa pela imagem mental que cada indivíduo faz de si mesmo e que busca impor ao mundo com a mesma ênfase que o personagem de Borges no conto “Ruínas Circulares”.
A Leitura Metafísica, subjacente ao texto, não exclui a Leitura Metalingüística, ao contrário: amplia-a de tal forma que pode ser tomada como ponto de partida e chegada da anterior, ou melhor dizendo, como recurso temático que fundamenta a metáfora da relação vida e arte utilizando a ideia da reencarnação como base deste recurso temático.
A reencarnação faz parte dos conceitos de diversos segmentos espiritualistas, sendo o Espiritismo o mais difundido dentre eles. De acordo com o conceito espírita, o espírito vive diversas vidas em uma incessante marcha de progresso. Nesse processo evolutivo, a afinidade entre espíritos faz com que eles se busquem constantemente, fortalecendo laços que os unem cada vez mais, cometendo erros e acertos, aprendendo e ensinando mutuamente. Desta forma, ainda de acordo com o Espiritismo, as almas em evolução conquistam vitórias e recebem novas oportunidades de acordo com seu merecimento. Parece-me ser esta a ideia de reencarnação que perpassa o texto de Drummond, i.e., o poeta utilizou o conceito reencarnacionista nos moldes da Doutrina Espírita para a escrita do poema em questão.
Esta leitura de caráter transcendental está longe de ser nova e não será este o primeiro texto a apontar tal caráter do poema de Drummond. De fato, a “Balada do amor através das idades” já havia sido incluída na antologia Temas espíritas na poesia brasileira, de Clóvis Ramos, que apenas lhe assinalou a temática reencarnacionista. Longe de menosprezar o trabalho do antologista, arrisco-me a dizer que seu “Sem comentários”[3] que antecede a transcrição do poema representa uma visão por demais simplista do mesmo determinada, talvez, pela quantidade de páginas que a antologia em questão deveria ter. Tomando-o como ponto de partida, proponho-me a atualizar e ampliar sua leitura.
Começando pelo título já seremos capazes de perceber a perspicácia de Drummond na escolha e no trabalho com as palavras. Uma balada é um tipo de composição poética cuja principal característica é a narrativa de lendas. Desta forma, o poeta itabirano confere a seu texto, logo de início, um caráter lendário, antigo, que se perde nas eras temporais, cujo sinônimo idade também comparece no título.
É, portanto, a partir deste título, e não do desfecho, que se poderá ler o poema sob a ótica do transcendental. O título situa o poema entre o lendário e o mítico para narrar os sucessivos encontros e desencontros de um casal que se busca vida(s) afora, sem poder, em sucessivas ocasiões, realmente gozar este amor cultivado há tanto tempo e de maneiras tão inusitadas. Não se tome o caráter lendário e mítico do poema de Drummond como um afastamento da realidade; ao contrário, o poeta utiliza a linguagem mítica para referendar a própria realidade a partir da associação do imaginário a uma consciência realista da mesma maneira que, em outros poemas, efetua uma “transposição ao imaginário de uma pátria historicizada”[4]. Portanto, a ideia da reencarnação é tomada pelo eu lírico do poema em questão como um elemento realístico; não um mito provável, mas sim um fato palpável.
Na primeira estrofe vemos o casal em um de seus encontros em plena batalha de Tróia, quando se encontram em lados opostos da contenda. Não se pode afirmar ser este o primeiro de seus encontros, uma vez que o texto afirma vir este amor “de tempos imemoriais”, no entanto, situando o primeiro encontro narrado em meio à lendária guerra entre troianos e gregos, não poderia ter sido mais ilustrativa do caráter do próprio poema. Basta atentarmos para o fato de que a Guerra de Tróia Histórica não tem um décimo do “prestígio” da Guerra de Tróia Lendária (ou Literária), mas que serve-lhe de modelo e referência para uma batalha Lendária/Literária que tem profunda influência na mentalidade humana. É como se o poema nos dissesse “Pouco importa se esta história aconteceu ou não, o que realmente interessa é como ela se presta à ilustração de uma realidade que nos escapa”.
É esta primeira estrofe que apresenta uma das etapas iniciais do sentimento amoroso sob uma conjugação inovadora (Eu te gosto, você me gosta) apontando para o princípio de simpatia que rege as relações amorosas e que muitas vezes apresenta-se de maneira inusitada, no caso, entre dois inimigos. Já nesta primeira estrofe será curioso o fato de os personagens anônimos dissolverem-se em acontecimentos famosos, dissolução esta ironicamente retratada no fato de que a mulher em questão é troiana “mas não Helena”. A ironia representa em Drummond o modo inicial de contato com a realidade, segundo Costa Lima que ainda assinala a multiplicidade da ironia no livro de estreia do poeta mineiro: “Em Alguma poesia, entre poemas de circunstância e poemas-piada, entre ingênua e complacente, a ironia já aparece habilitada a liberar o poeta dos mitos que praticavam ou a que tendiam os contemporâneos”. (1968: 138)
Na sequência temos outra referência histórica bem definida: a perseguição e morte de cristãos pelo regime romano. Neste trecho, Drummond confere ao amor um caráter de sacrifício na imagem do soldado que dá a própria vida por uma inimiga sem um porquê definido para ambos a não ser o impulso de um momento.
A terceira estrofe traz os dois amantes mais uma vez em lados opostos, mas buscando-se com grande ardor. Neste momento, o eu lírico mostra-se incapaz de compreender o amor como doação. O que na vida anterior foi doação de vida torna-se agora o amor paixão, aquele que escraviza, que cobra, que exige obediência. Ele mostra ali a perda do amor sempre que os amantes não se mostram maduros o suficiente para lidar com o sentimento amoroso de forma equilibrada. Todos perdem. Perde-se o amor. Perde-se a vida.
Convém aqui um parênteses: se o princípio reencarnacionista conforme ensinado pelo Espiritismo prevê a evolução incessante, não seria de estranhar que o eu lírico que se sacrificara anteriormente pela amada apareça agora com um sentimento tão desequilibrado? Duas hipóteses se nos apresentam: 1) o eu lírico pode estar apresentando-se no singular por um processo de fusão das vozes, representando assim dois eus líricos que se confundem um no outro, ou 2) o sacrifício anterior, sendo oriundo de um impulso, seria demonstração não do desprendimento do amor, mas da paixão arrebatada. Sendo um, sendo outro, ambas as visões nos servem.
A estrofe seguinte traz o início da maturidade amorosa, maturidade esta que traz os “tempos mais amenos” da relação. É claro que esta amenidade não é completa, pois ainda aqui temos a dicotomia entre os gênios dos amantes: de um lado o homem regido pelo sensualismo que o leva à corrupção de suas energias genésicas, muito embora seja inteligente e bem humorado; de outro vemos a mulher que já evoluiu em seu sentimento, a tal ponto que busca a sublimação por meio da religião, embora tal sublimação surja mais como elemento externo do que fruto da convicção. A atração dos dois ainda é forte e será aparentemente obliterada pela marcha incessante da história na qual a guilhotina (uma possível referência à Revolução Francesa) surge como um símbolo para o desencontro que parece perseguir o casal.
Ao chegarmos à última estrofe já podemos afirmar que o poema de Drummond demonstra o conhecimento por parte do autor a respeito dos conceitos espíritas, os quais utiliza de forma brilhante na construção de seu texto. Após tantas vidas e desencontros, os amantes recebem nova oportunidade de se encontrarem e, desta vez, conseguem atingir certo equilíbrio. A afinidade entre os dois fica patente pelos gostos em comum que não excluem a individualidade de ambos. Mesmo nesta vida surge a dificuldade para a concretização amorosa, configurada na imagem do pai da moça, símbolo de coerção que não será capaz de impedir que os amantes deem um passo decisivo em seu sentimento: o casamento, que aqui surge como a completude de séculos de busca um pelo outro.
E voltamos assim ao início de nossa análise. O eu lírico se afirma um herói cinematográfico, pois tem a consciência da verdadeira epopeia que atravessou no decorrer de diversas encarnações, vencendo seus próprios impulsos até alcançar o grau evolutivo que lhe possibilita finalmente viver aquele amor tão sonhado que passou do desejo à compreensão, da violência ao carinho, do ideal ao real.
O poema de Drummond é um exemplo do que já havia sido assinalado em Obras póstumas[5]:
Que inesgotáveis fontes de inspiração para a arte! Que obras-primas de todos os gêneros as novas idéias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita!
[...]
Sem dúvida, o Espiritismo abre à arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efêmeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura e eterna da alma.
Não se trata aqui de levantar hipóteses a respeito da opção religiosa de Carlos Drummond de Andrade, nem isto é relevante para nossa análise, mas sim de demonstrar o quanto o Espiritismo oferece à humanidade em termos temáticos e ideológicos, apresentando recursos que podem ser utilizados por todos, sejam eles espíritas, simpatizantes ou agnósticos e que pouco importa o rótulo que se lhes dê, pois o mais importante, a mensagem, está lá.
Sempre pensei em Drummond como um poeta transcendental por ser o autor de uma poética que ultrapassa o tempo e o espaço. Agora vejo-o também como um poeta transcendentalista capaz de penetrar surdamente no reino das palavras e abrir multidões de portas e caminhos respondendo afirmativamente à pergunta: “Trouxes-te a chave?”.
[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 10 livros de poesia. Introdução de Antônio Houaiss. 9 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, pág. 22.
[2] LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pág.136-7.
[3] RAMOS, Clóvis. Temas espíritas na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1969, pág. 199.
[4] LIMA, Luiz Costa. Op cit. Pág. 138.
[5]KARDEC, Allan. Obras Póstumas (Euvres Posthumes). Trad. De Guillon Ribeiro. 22 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.
Muito bacana,
ResponderExcluirEu tenho uma música no CD Cantoria de Luz de título OFÍCIO DE CANTADOR, que se assemelha a este poema sem que o tenha conhecido antes.
Valeu, meu amigo!
Merlânio Maia