segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Memórias de um amante da poesia - 04

 Livros intermináveis

Acabar um bom livro é como deixar um bom amigo”.

William Feather (1889-1981)

Há algo de estranho com livros de poesia.

Quando alguém fala de um romance, por exemplo, e diz que “não conseguiu parar de ler”, fica subentendido que a pessoa leu o livro quase que de uma sentada só. Vem à mente a imagem de um leitor compenetrado na leitura de uma história, vivendo ao longo de um dia inteiro (ou talvez dois) as vidas daqueles personagens com os quais se identificou, sofrendo com suas tristezas e vibrando com seus sucessos, desejando ardentemente que o vilão receba seu castigo ao final da história.

O mesmo não se dá com livros de poesia.

A frase “não consegui parar de ler”, aplicada a um livro de poemas tem um sentido bem diferente.

Ao contrário de romances, contos e outros tipos de narrativa, a poesia não nos exige pressa de acabar, na realidade a poesia representa uma traição à rotina da vida cotidiana, sempre corrida, sempre cobrando das pessoas que não se demorem demais, pois tempo é dinheiro, comida é dinheiro, amor é dinheiro, vida é dinheiro, tudo resumido a um eterno aqui e para ontem que nos assola. A poesia rompe com tal lógica.

É claro que podemos imaginar um leitor devorando páginas e mais páginas de um livro de poemas, principalmente quando este o empolga, com uma celeridade absoluta. Entretanto, mesmo quando o leitor percorre as páginas de um livro de versos com olhos famintos, esta leitura será repleta de pausas e silêncios, ou não será leitura.

Há poemas e poetas que nos impõem longos momentos de análise, de espanto, de choque. São momentos nos quais muitas vezes nos vemos obrigados a largar o livro e ir fazer algo mais prosaico como assistir uma série, lavar a louça, cuidar dos cachorros ou simplesmente ficar sentando olhando para algum ponto situado entre nós e o infinito. São momentos em que sentimos a necessidade de voltar para nós mesmos, para aquele lugar de onde o poema nos retirou, nos deixando em estado de suspensão.

Quando somos arrebatados por um livro de poemas, não conseguimos parar de lê-lo, mesmo quando saímos para o trabalho e deixamos o livro em cima da mesa, ou no braço do sofá. O livro ficou e também nos acompanha, pois a leitura de um poema não termina no último verso, assim como a leitura de um livro não se acaba na última página.

Atualmente isso tem me acontecido com certa frequência. No momento em que escrevo estas linhas, não consegui parar de ler pelo menos dois livros de poemas. Um é o recentemente lançado É chegado o tempo de voltar a superfície, de Alberto Pucheu, do qual já li metade dos poemas que o compõem. A cada texto lido, sinto uma irresistível necessidade de parar e olhar ao redor, de soltar o livro e o manter junto a mim, de fechar as páginas depois de cada “só mais um e chega por hoje”.

Outro livro que não consigo parar de ler é Metade cara, metade máscara, poesia indígena de Eliane Potiguara que me retirou completamente de minha zona de conforto há mais de um ano, desde que cheguei à sua última página. Por vezes penso que o que mais fiz nos últimos doze meses foi revisitar cada um de seus versos tentando reencontrar uma parte de mim que sequer sabia perdida.

Talvez este seja o verdadeiro feitiço que a poesia lança em cada um de nós, essa impossibilidade de parar de ler os poemas. Talvez esta impossibilidade seja fruto do fato pouco comentado de que os poemas também não param de nos ler.

Glaucio Cardoso

30/11/2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário