Anotações em torno da leitura de Os Transparentes, de Ondjaki
Eu
já tinha lido alguns poemas de autor angolano Ondjaki quando recebi o convite
para participar do grupo de leitura promovido pela Stop and Learn, escola de
idiomas sediada na cidade de Franca (SP). Nestes tempos de quarentena, quando
somos compelidos ao isolamento social e explodem as reuniões on-line, as lives e outras formas tecnológicas de
diminuir a sensação de isolamento, os quase 800km que separam Mesquita (RJ) da
cidade paulista não me impediram de estar com outros leitores.
Como
disse, eu já lera algo da poesia de Ondjaki, o que me fez curioso quanto à sua
escrita em prosa. A primeira surpresa: sua prosa é totalmente permeada pela
potência do poético.
E
que obra! Densa! Inquietante! Atual...
Pelas
páginas vemos um desfilar de personagens que se presentificam por alguns
momentos para, logo a seguir, se diluírem pelas ruas de Luanda. Seus nomes
falam muito mais de ideias e sensações, mais de identidades pessoais que se
personificam junto ao coletivo que de meros registros burocráticos: o Carteiro,
o Cego, o VendedorDeConchas, JoãoDevagar, MariaComForça, o CamaradaMudo,
Odonato...
Ah,
Odonato! Talvez a figura central, aquele que ao longo da história representa
nosso próprio sentimento de estar no mundo nestes dias amargos que se
desenrolam, ao menos aqui no Brasil. É ele o sujeito que vai corporificando a
transparência de toda uma nação, de toda uma classe social, aquela que é sempre
deixada de fora das celebrações oficiais e que muitas vezes só é lembrada para
votos, pagamento de impostos e a procriação que garante a manutenção do status quo de uma minoria composta por
políticos profissionais.
- o país dói-me... a
guerra, os desentendimentos políticos, todos os nossos desentendimentos, os de
dentro e os que são provocados por aqueles que são de fora...
Palavras
de um personagem luandense, nascido da cabeça de um autor universal, escritas há
quase dez anos e que ecoam um sentimento tão presente, tão contemporâneo, tão
nosso enquanto brasileiros.
É
essa dor que mais enfatiza a transparência (literal) do personagem. Sua pele
vai se tornando translúcida sem que ninguém, nem mesmo ele, chegue a achar isso
exatamente inusitado. Como o Gregor Samsa, de A Metamorfose (Kafka), que não se surpreende ao ver-se transformado
num inseto enorme, pois era para ele a consequência natural de sua vida e seu
trabalho, Odonato demonstra aceitação, e até mesmo uma dose de prazer, em sua
nova condição, antecipando que seria ela a responsável por sua libertação
final.
Outro
personagem de extrema grandeza é AvóKunjikise, que no seu dialeto todo próprio,
muitas vezes cifrado, representa o misticismo ancestral, o conhecimento do
oculto, capaz de fazer com que suas preces chegassem às almas do outro mundo. Tal
mística se reflete também no prédio que verte água em meio a uma cidade onde
esta é sempre escassa. Talvez o prédio e a mais velha sejam consciências que se
sobrepõem à própria narrativa:
- o tempo é um lugar que também
fica parado [...]
Palavras
da AvóKunjikise que podem ser lidas em uma dimensão metalinguística. Vivemos um
tempo estranho. As narrativas ficcionais parecem rebelar-se contra o ficcional:
tudo precisa “fazer sentido” em nome de uma verossimilhança que apenas reflete
a perda do estatuto de mito antes concernente ao ato de narrar. Em
contrapartida, vemos a mitificação da narrativa que deveria ser o mais realista
possível, principalmente quando governantes se apropriam da linguagem para
fazer-se passar pelo que não são.
Neste
sentido, Os Transparentes representa
um esforço de reaproximação do mitológico. Seu começo é enganador: parece que
estamos diante de uma escrita convencional, comum, carregada de didatismo. Linhas adiante, somos lançados em um
torvelinho conceitual que, de um lado, não perde a história de vista e, de
outro, é um permanente reinventar.
O
texto em si é tão vasto que não cabe em uma análise apressada, tão pouco caberá
em anotações despretensiosas como estas. É de uma riqueza tão grande que é
possível traçar-lhe diálogos com Guimarães Rosa, Clarice Lispector, o já mencionado
Kafka, George Orwell e outras artes.
A
leitura em grupo nos permite encarar as várias dimensões em que essa história se
desdobra, obra múltipla e universal cuja potência nos invade aos poucos e vai
nos preenchendo com seu fogo vermelho, um vermelho devagarinho...
Glaucio Cardoso
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