A poucos dias terminei a leitura de O herói de mil faces, de Joseph
Campbell (Foto à direita). Durante anos ouvira falar dessa obra e lera muitos excertos da mesma,
principalmente aqueles que procuravam resumir o que se convencionou chamar de a Jornada do Herói, sem nunca ter conseguido o livro em si. Até que finalmente o
encontrei na última Bienal do Livro do Rio de Janeiro (setembro/2019).
Não
tentarei fazer um resumo do estudo de Campbell, pois creio que seria no mínimo
desrespeitoso para com um trabalho de tamanho fôlego e relevância. O que se
segue é apenas um amontoado de pensamentos, talvez ainda imprecisos, que sua
leitura semeou em minha mente e que, creio, me acompanharão por tanto tempo
quanto eu me permitir pensar o humano e o literário sob a ótica do mitológico
conforme exposto pelo autor.
Quer
aceitemos ou não, somos todos frutos das narrativas que nos perpassam. Desde os
mitos fundadores ancestrais, até as narrativas cinematográficas, passando pela literatura
em todas as suas vertentes, pelas histórias em quadrinhos, pelas piadas
contadas em volta de uma mesa, somos seres que aspiram ao mitológico, que nos
encontramos nessa caminhada composta de inúmeras etapas.
A
Jornada do Herói, o monomito
estudado por Campbell, se encontra arraigada na própria formação das sociedades
e dos indivíduos. O grande mérito do estudo desse autor estadunidense reside no
fato de não privilegiar nenhuma mitologia em detrimento de outras.
No mesmo nível se
encontram deuses como Zeus e Exú, o herói Gilgamesh e a dona de casa, os
relatos fundadores e os sonhos, quando Campbell dialoga com a psicanálise de
forma inteligente, embora não isenta de questionamento, o que só enriquece o
pensar sobre seu trabalho.
Há espaço para se
pensar na figura central do Cristianismo, Jesus, como sendo um herói típico das
narrativas primitivas ou literárias, demonstrando ser ele o humano que se
diviniza por seus próprios méritos, diferente do enviado divino distante da
humanidade, cujos feitos e ações são inalcançáveis pelos “simples mortais”,
conforme a religião institucionalizada acabou cunhando. Para Campbell, é como se
o Cristianismo, ao elevar Jesus à condição de inigualável, traísse suas
palavras: “Vós sois deuses, o que faço podeis fazer e, se quiserdes, muito mais”.
Essa aventura do herói
seria refletida em cada ação nossa, mesmo a mais corriqueira, pois estamos
imersos em mitologias coletivas e pessoais, sem que seja possível estabelecer
uma real fronteira entre elas. Nossa jornada se confunde com a jornada do
coletivo e é prova de amadurecimento quando entendemos esse coletivo para além
das fronteiras inventadas pelas nações.
Num tempo como o nosso,
em que diversos países veem o surgimento e a ascensão de líderes pseudonacionalistas
com pretensões fascistas, é impressionante ler esse trecho em uma obra
publicada há mais de 70 anos:
Nos
nossos dias, a comunidade é o planeta e não a nação com seus limites; eis por
que os padrões da agressão projetada, que antes serviam para coordenar o grupo
voltado para si mesmo, hoje podem apenas dividi-lo em facções. A ideia de
nação, com a bandeira servindo de totem, serve hoje de elemento engrandecedor
do ego infantil, e não de elemento aniquilador da situação infantil. (2007:373)
Não se trata de abolir o sentimento
de pertença a uma nação, mas de amadurecer essa ideia de nação para abarcar
todo o planeta do qual fazemos parte.
Vivemos por vezes tão preocupados
com o imediatismo de nosso dia a dia que soa estranho que alguém volte o olhar
para o passado. Aí reside um erro de interpretação que a massa comete em sua
cegueira: achar que o passado realmente passou. O passado, os mitos, lendas e
narrativas são em verdade nosso presente e nosso futuro, pois sem ele não somos
ou seremos.
Haveria ainda muito o que dizer a
respeito de inúmeros trechos do livro, mas creio que preciso de tempo para
amadurecer as ideias que ele me fez fervilhar no cérebro.
O livro merece ser lido e relido,
seja por estudiosos, seja por curiosos. Não vou enganá-los dizendo ser uma obra
cuja leitura pode ser feita apressadamente. É tão rica de ideias e informações
que precisará de tempo para ser devidamente apreendida. Talvez ao longo de uma
vida inteira.
Glaucio Cardoso
O herói de mil faces
Joseph Campbell
Ed. Cultrix/Pensamento
414 páginas.
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