por Thales de Oliveira
Glaucio
Cardoso é o último herdeiro da estranha e milenar tradição dos poetas loucos.
Sempre será estranha, pois tudo que é excelente está destinado à raridade e
pouca familiaridade. Erasmo de Roterdam deixou claro, em sua magistral “Elogio
da Loucura”, que não é ao equilíbrio da razão que deveríamos estar mais gratos
nos momentos mais criativos de nossa existência, mas sim à loucura, pois ela é
quem nos arranca do ordinário, do vulgar, do mortificado. E por isso é tão
difícil ser louco. É muito mais fácil ser normal e previsível. Do mesmo modo,
São Paulo afirma que a sabedoria de Deus é loucura para os homens e, em troca,
a sabedoria dos homens é loucura para Deus. E por isso é tão difícil ser
cristão. O cristão aceita a loucura divina porque sabe que a máxima sabedoria
está ali. Ele abandona a razão, a ratio
(do latim “proporção”), quando a ratio
o impede de acessar a criação divina. E Glaucio busca a criação divina. Ele é
completamente inebriado por isso, tanto na poesia quanto na vida pessoal, e
sabe disso quem tem o privilégio de conhecê-lo. Não quer apenas fazer, mas sim
criar. E não apenas criar. Sua suprema pretensão é criar de modo ao menos
semelhante ao modo como Deus o faz. Digo “ao menos semelhante” apenas para
livrar meu amigo da fúria de algum leitor inquisitorial, algum espírito
suscetível ao assombro perante um indivíduo que almeja nada mais do que o
próprio Infinito e sua fusão com ele.
Reside
exatamente nesta ânsia de fusão mística a chave hermenêutica para compreender
as principais centelhas extraordinárias do poeta Glaucio. A poesia para ele não
é apenas ofício extrínseco. É sua própria alma. E sua alma não está encerrada
dentro de si. Ou melhor: como ele costuma dizer com frequência, na frase de Victor
Hugo: “O poeta é um mundo encerrado em um homem”. Ora, sobre isso cabe um conto
oriental. O mais orgulhoso dos reis recebeu um presente. Era o mais belo vaso
de rara cerâmica. E dentro dele habitava um filhote de dragão. O soberano foi
tomado de alegria incontida. Mostrava a todos aquela criatura fantástica, que
nenhum rei jamais teve o privilégio de ver, enquanto ele poderia contemplar
todos os dias. Com o tempo o filhote foi crescendo. E imediatamente surgiu a
natural preocupação: De que modo evitar que o dragão, crescendo demais, quebre
o vaso tão valioso? Ambos eram valiosos: o vaso e o dragão. O rei, desesperado,
mandou buscar os mais sábios da nação. Mas nenhum deles sabia o que dizer. Não
havia um só que pudesse solucionar o enigma. Até que um súdito bem informado
contou sobre um eremita, mais sábio do que qualquer daqueles falsos sábios.
Todos receberam a ordem de encontrá-lo, onde quer que ele estivesse meditando.
Finalmente o legendário sábio foi encontrado e levado à presença real. A
ansiedade do soberano era demais. Ao ser perguntado sobre o problema, o sábio
parou um pouco, pensou, até que exclamou: “Eu já sei o que dizer à Vossa
Majestade”. Pois então, diga logo – quase suplicou o rei. – “Não
se põem dragões dentro de vasos.”
Tal
fábula ilustra bem o modo como devemos encarar a alma de Glaucio, seu ímpeto
estético, sua lavoura poética. Assim como a poesia não cabe dentro da História
da Arte, pois, segundo meu próprio amigo me ensinou, “a poesia é superior”, do
mesmo modo o ímpeto e alma de Glaucio não cabem dentro de seu corpo, não cabem
sequer dentro de sua personalidade, já tão rica e multifacetada por si só. Ele
é místico. E todo místico escolhe um silêncio interior para fazer falar dentro
de si todas as vozes do mundo. Ora, cada voz, de certo modo, é uma alma. O
verbo, o logos, é o diferencial da alma humana. Se a lógica busca o logos
científico, a poesia busca o logos pneumático, o verbo da alma. E a poesia de Glaucio
Cardoso está sempre na caça de todas as almas, ou ao menos de todas as almas
cujo verbo seja digno de ser contado e revivido.
Neste espírito hermenêutico estaremos em condições de
compreender a lógica profunda que perpassa a aparente teia simbólica costurada
pelo Trovador do Cruzeiro. Entenderemos assim que as páginas desfolhadas por
nosso ávido desejo não são apenas letras escritas: são reescrituras. A
finalidade última é resignificar o próprio conceito de egoidade, talvez até
destruí-lo por outro maior. Será que Glaucio tem em mente o conceito estoico de
“Persona” ou “Hipóstase”, para remeter à própria língua helênica? Os estoicos
eram filósofos do período helenístico, caracterizado por dois fenômenos
históricos cruciais para a ventura humana no globo terrestre: 1) expansão
militar e cultural da grandiosa cultura helênica por toda a esfera conhecida da
Terra; 2) falência do conceito tradicional de cidade-estado. Os gregos, assim
como outros povos poderosos, outrora tão ciosos de sua pátria, definindo seu
próprio ser enquanto pertencentes à sua nação, perdem agora esta identidade
existencial e passam a se considerar, muito mais “cosmopolitas”, palavra que
deriva de “cosmos” e “polis” (mundo e cidade). Os homens elevados e mais
profundos são os “cidadãos do mundo”. Consta que Diógenes, um filósofo do
cinismo (doutrina que imita a simplicidade dos cães, e por isso kynos) cunhou tal palavra, para mostrar
que estava em busca do ser humano puro, universal, sem restrição local e
temporal. E o procurava dia e noite com sua legendária “Lanterna de Diógenes”.
Afinal, o que é o homem? “Quem sou eu?” Eis uma pergunta-chave da filosofia. E
lá está também o poeta Glaucio fazendo a mesma indagação, invadindo o espaço
filosófico para manter viva a rivalidade mística e criativa entre poetas e
filósofos. Qual é o modo poético de mostrar que é cosmopolita? Qual é o seu
modo de bradar “Quem sou eu?” Certamente será mística, se o bardo em questão
for o nosso Trovador do Cruzeiro. Ele se identificará com algo desmedido, algo
que transcende, não só a métrica, mas também a corporeidade do escritor, algo
que ganha o mundo. Ele está em busca de outras “personas”. Tal palavra
significava, no teatro antigo, a máscara por (per) onde soa (sona) a
voz do ator. Se a máscara fosse de riso, era uma comédia. Se fosse de tristeza,
era de um drama. E tal coisa poderia ser vista até pelo expectador do último
canto da fileira. E assim, em lugar de limitar a expressividade, a máscara
multiplica as possibilidades do ator, tornando viável até a interpretação
masculina de papéis femininos. E assim os estoicos entendiam o drama da
existência humana na Terra. Cada um de nós nasce com um certo papel, mas aquele
papel não é o nosso ser. Os dois maiores filósofos estoicos foram um Imperador,
Marco Aurélio, e um escravo, Epíteto. Isto explica porque o estoico afirma que
o homem elevado e profundo saboreia o banquete com a mesma naturalidade com que
experimenta o pão velho e “dormido”. O nosso “lógos”, nossa razão profunda é
que vale. E nosso lógos é universal,
em todos igual. Antes de “cair nesse mundo”, nosso lógos estava fundido com o lógos
cósmico. Mas aqui na Terra ele cumpre um papel específico, pois a vida é um
teatro. Aquele papel não definirá o nosso ser, mas poderá torná-lo digno se o
cumprirmos com dignidade.
“Tu
és isto”. Eis o ensinamento mais profundo do Vedanta e de toda a sabedoria
hindu. É o momento mágico, instante transcendental em que o discípulo é
convidado pelo mestre a olhar qualquer coisa no mundo, qualquer ente da
natureza que chamar a sua atenção, seja uma lagarta, uma borboleta, um mendigo,
uma folha que cai, uma rocha solitária. Então o discípulo, atônito, volta-se
para o mestre, como se perguntasse: “Por quê?”, ao que ele responde para o seu
pupilo: “Tu és isto. Para onde quer que olhes, tu sempre serás isto para onde
olhar. Tu és cada criatura do universo. É apenas isto que precisas compreender
para que toda a verdade que existe perpasse teu espírito.” Se, naquele momento,
o discípulo percebe o que isto significa, ele se iluminou, concluiu todo o seu
trabalho espiritual, a sua árdua senda ascética. A poesia também permite tal
iluminação, contém um poder de tal envergadura, mas que dificilmente é acessado
pelos poetas menores, os poetas meramente versificadores. Glaucio assumiu a
responsabilidade tremenda de fazer a poesia falar o infinito. Seu dever supremo
é o de fazer soar todas as vozes através de sua persona, de sua máscara onipresente, onissensível, onissenciente. É
por isso que seus versos não são apenas versos. São fórmulas mágicas, ritos
encantatórios, mantras portadores das mais belas verdades místicas, ocultas
desde que o sopro vital inflou o peito humano, e agora desveladas pela sua
pena, pelo relâmpago de sua indomável criação estético-transcendental.
Nietzsche
preferia a música a todas as artes, pois, assim como Schoppenhauer, via nesta
arte a Vontade Universal em pessoa, enquanto as outras artes seriam apenas
representações da mesma vontade e, portanto, vontade de segunda mão. E afirmava
que todas as coisas querem soar, todos os corpos querem ser instrumentos
musicais e assim vivificarem. Hegel jamais concordaria com isso, pois enxergava
na poesia a redenção do espírito no momento em que a música, a última arte,
quase o conduz à evanescência total que despedaça no exato momento em que
vivifica. Mas a poesia, segundo Hegel, está além da última. Ela é o retorno do
espírito para dentro das coisas para que elas vibrem como na música, porém sem
abandonar sua concretude carnal que as mantém na vitalidade visceral do ser. É
o mergulho para dentro das pessoas, para dentro do puro Outro, aquele Tu de que
falava Martin Buber e tantos outros filósofos da dialogicidade do ser. Glaucio
pretende resgatar o Tu para a poesia, pois esta é a missão mais divina desta
arte: fazer o eu desprender-se de si mesmo, negar a si mesmo como queria o
Mestre, abrir-se para o milagre da alteridade infinita que se depara conosco e,
por fim, nos abarca e engolfa. A máscara é perigosa demais. É um caminho sem
volta, esse do ator-criador-poeta. Ora, “lá onde mora o perigo, também brota o
que salva”, já dizia Hölderlin, o mais louco e profundo de todos os poetas
alemães. Mas nada disso soa estranho para nosso amigo, pois ele é amigo da
estranheza insólita, de tudo que traz o novo, mesmo levando ao risco fatal para
a comédia multiforme da vida. O principal não é sorrir ou chorar, ganhar ou
perder, fruir ou privar-se. O principal sempre foi o esperar:
“Cai o pano,
Cessa a canção,
As cores se dissipam
No apagar das luzes.
A vida real nasce da ilusão,
A máscara expõe a pessoa nua.
Sem a maquiagem
Toda a essência se esvai
E me vejo como triste mentira.
Sou um ator à espera de
Um personagem para viver
Ou sou quem espera que me vivam?”
Thales de Oliveira é Doutor em Filosofia Clássica.
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