A questão do lugar da literatura espírita no contexto literário canônico é tema que ocupa minhas meditações já de algum tempo, principalmente devido ao fato de parecer-me que as análises literárias de obras espíritas têm sido feitas principalmente por pessoas que muito admiram a produção de nossos autores encarnados e desencarnados, mas que produzem avaliações superficiais, escrevendo verdadeiros panegíricos a autores e textos sem aprofundar-se em questões consideradas fundamentais dentro dos estudos literários como estética, estilística e autoria apenas para ficar naqueles mais comuns.
Tal superficialidade talvez se explique pelo fato de que tais análises são feitas na maioria dos casos por pessoas que não possuem a formação literária necessária para aprofundar certas questões. Não estou dizendo que um médico, um advogado, ou mesmo um padeiro não possam realizar belas e úteis análises textuais, em absoluto. Mas da mesma maneira que um advogado terá problemas para fazer um pão e um médico não se defenderia de maneira eficaz diante de um júri, um estudo literário exige o conhecimento de certos conceitos que não podem ser adquiridos apenas pela leitura de verbetes enciclopédicos ou por uma visão superficial do texto literário em si. Há alguns conceitos de teoria literária que escapam ao leigo, por melhor leitor que ele o seja.
Sinto falta de que nossa produção textual seja estudada por pessoas com formação em letras, o que tem representado mesmo um empecilho para sua aceitação fora das fileiras espíritas. Proponho-me, portanto, a buscar a problematização da chamada Literatura Espírita tendo como base os conceitos científicos da teoria literária, objetivando assim prover outros pesquisadores mais competentes de alguns pontos de partida para suas próprias elucubrações.
No presente texto, darei vazão a algumas ideias a respeito dos romances espíritas. O tema é vasto e o espaço é curto, o que talvez nos obrigue a conceituações de ordem geral.
O romance liga-se ao gênero narrativo ou épico, sendo uma narrativa em prosa como também o são a epopeia, a novela, o conto, a crônica, a anedota, a fábula, o apólogo e a parábola¹. A palavra romance² designa toda narrativa longa. O grande problema é que não há um consenso do que seja exatamente longa em termos de narrativa, o que muitas vezes faz com que só se possa distinguir bem o romance do conto, enquanto que sua confusão com a novela é por demais problemática, não nos cabendo aqui tentar desfazê-la.
O surgimento deste tipo de texto literário tem raízes na Idade Média, ganhando pouco a pouco contornos mais definidos, nas palavras de Vitor Manuel³:
Alargando continuamente o domínio de sua temática, interessando-se pela psicologia, pelos conflitos sociais e políticos, ensaiando constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se, no decorrer dos últimos séculos, mas sobretudo a partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. De mera narrativa de entretenimento, sem grandes ambições, o romance volveu-se em estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexão filosófica, em reportagem, em testemunho polêmico, etc. (1982: 639)
A importância do romance como veículo literário de experimentações estilísticas e temáticas é, portanto, um fenômeno historicamente identificável e, ao mesmo tempo, responsável por sua grande aceitação em todas as camadas da sociedade.
Temática e formalmente, o romance se adapta a praticamente tudo. Desde histórias água com açúcar até retratos da alma humana, de narrativas convencionais e lineares a textos fragmentários e subversivos. Não é por acaso que os romances espíritas têm representado o principal veículo de divulgação das ideias espíritas. Desde Giovana, de Léon Denis, passando pelas obras assinadas por autores como Emmanuel, André Luiz, Fernando do Ó, Wilson Frugillo Jr., até obras contemporâneas como Nova Aurora, de Rogério Felisbino da Silva, ou a produção psicográfica em geral, o romance espírita vem se mostrando uma inesgotável fonte de ensinamento doutrinário, podendo mesmo ser apontado como o grande responsável pelo surgimento de novos adeptos do Espiritismo, numa clara demonstração da força que tem a arte na propagação de ideias.
Mas como poderemos estudar os romances espíritas diante de sua produtividade, suas manifestações e temáticas tão diversas? Proponho-me a algumas classificações que em muito podem auxiliar o pesquisador ou o leitor.
Podemos dividir a produção romanesca espírita em três gêneros:
· Romances Mediúnicos – nos quais há a intervenção direta de um espírito desencarnado; a este gênero pertencem os romances psicografados.
· Romances Inspirados – a intervenção do espírito desencarnado não é direta, sendo mais uma sugestão.
· Romances Anímicos – textos escritos apenas pelo encarnado, sem que a influência dos espíritos seja sensível4.
Os três gêneros apresentam duas vertentes narrativas:
· Vertente Factual: relatos de fatos ocorridos, i.e., reais.
· Vertente Ficcional: histórias inventadas pelo autor.
Um simples olhar sobre os romances espíritas nos permite verificar alguns fatos:
1º. A quase totalidade dos Romances Mediúnicos propõe-se a narrar fatos reais vivenciados pelo autor espiritual ou colhidos nos arquivos da espiritualidade.
2º. Os Romances Inspirados têm suas narrativas divididas nas duas vertentes, embora com maior tendência à vertente factual.
3º. Já os Romances Anímicos costumam apresentar quase que predominantemente a vertente ficcional, embora com algumas ocorrências de narrativas escritas a partir de pesquisas históricas, como biografias e outros relatos escritos a partir de registros factuais.
4º. Independente do gênero ou vertente no qual o romance se enquadre é possível observar que as narrativas costumam apresentar certo didatismo que muitas vezes compromete o andamento da própria narrativa bem como sua qualidade literária.
5º. Tal didatismo aproxima os romances espíritas da proposta naturalista do romance de tese.
Sobre estes dois últimos itens da presente exposição é que se fundamenta grande parte de minhas observações a respeito da produção literária espírita. Há dois conceitos interligados dos quais farei breve, mas imprescindível, explicação: Naturalismo e Romance de Tese.
O Naturalismo foi um movimento artístico da segunda metade do século XIX que tinha como características básicas o cientificismo e o empirismo. Nas palavras de Arnold Hauser5:
O naturalismo deriva quase todos os seus critérios de probabilidade do empirismo das ciências naturais. Baseia seu conceito de verdade psicológica do princípio de causalidade, o desenvolvimento apropriado da trama na eliminação do acaso e dos milagres, sua descrição do ambiente na ideia de que todo e qualquer fenômeno natural tem lugar numa interminável cadeia de condições e motivos, sua utilização de detalhes característicos no método de observação científica (...).
O princípio de causalidade e a eliminação do acaso são traduzidos literariamente pelo que se chama determinismo, i.e., o comportamento humano (no caso, dos personagens) é determinado, regido por fatores sociais, biológicos, fisiológicos, étnicos, etc. A literatura Naturalista se desenvolverá principalmente nos chamados romances de tese, textos literários que procuram provar uma ideia substituindo o discurso científico pelo discurso narrativo, ficcional, permeado de uma ideologia cientificista.
É neste ponto que podemos classificar melhor os romances espíritas de um modo geral. No já citado Giovana, por exemplo, o autor teve o claro intuito de narrar uma história de amor que mais não fazia do que ser um exemplo de como a reencarnação é capaz de reunir seres que se querem bem. Sendo o Espiritismo uma ciência, nada mais óbvio que sua filiação artística a um movimento estético marcado pela objetividade e pelo cientificismo, o que faz com que todos os romances espíritas possam ser enquadrados como romances de tese na tradição naturalista.
O determinismo, talvez o lado mais polêmico do naturalismo, assume uma nova face nos romances espíritas: o livre arbítrio aliado à lei de causa e efeito como sendo os verdadeiros elementos determinantes do comportamento humano e de seu destino, i.e., do que se passará com o espírito em decorrência de suas escolhas.
Outro fator relevante dos romances espíritas é a maneira como sua estrutura se apresenta.
O significado do texto narrativo literário (sua diegese) abrange, no caso dos romances, personagens, eventos, objetos, tempo e espaço. De acordo com a maneira como tal diegese se apresentar poderemos ter um romance fechado ou um romance aberto.
No romance fechado sua diegese é constituída por princípio, meio e fim, o narrador introduz os personagens de maneira metódica, seus ambientes. Tudo na mais perfeita ordem. Já o romance aberto não apresenta uma diegese com princípio, meio e fim bem definidos, acontecimentos e personagens sucedem-se, interpenetram-se ou condicionam-se mutuamente sem que venham a fazer parte de uma ação única e que os englobe. Nas palavras de Vitor Manuel:
O termo de um romance aberto contrasta profundamente com o termo de um romance fechado: no caso deste, o leitor fica a conhecer a sorte final de todas as personagens e as derradeiras consequências da diegese romanesca; no caso do romance aberto, pelo contrário, o autor não elucida os seus leitores acerca do destino definitivo das personagens ou acerca do epílogo da diegese. (1982: 696)
Lendo os romances espíritas disponíveis, podemos dizer que alguns se enquadram na categoria de fechados: têm sua ação desenvolvida no presente narrativo, a menção ao passado, incluindo-se encarnações anteriores, é feita as mais das vezes apenas para justificar este ou aquele ponto dos acontecimentos. O final destas narrativas apresenta os personagens em novas encarnações ou se preparando para estas, cujo roteiro é esclarecido ao leitor.
Temos também romances espíritas abertos: a ação inicia-se no presente narrativo, é interrompida para um flash-back que esclarece alguns pontos e deixa outros em aberto, e ao final sabe-se apenas que aquela história manterá desdobramentos futuros, porém incertos, não cabendo ao narrador o papel de dá-los a saber ao leitor. São bem raros.
Mais raros ainda, porém detectáveis, são os romances espíritas que constituem uma terceira diegese: os fechados-abertos. Mesclando características das duas diegeses já mencionadas, surpreendem os leitores com narrativas que deixam alguns pontos bem esclarecidos enquanto outros ficam em aberto.
Eis que estamos nos aproximando do final destas linhas. Era minha intenção inicial apresentar uma lista para cada uma das categorias mencionadas aqui, mas não o farei. Acredito ser mais interessante que o leitor possa ele mesmo buscar classificar o romance espírita que está lendo com base nos seguintes pontos:
1º. Os romances espíritas podem ser divididos em três gêneros: Mediúnicos, Inspirados e Anímicos.
2º. Cada um destes gêneros pode estar vinculado a uma de duas vertentes: Factual ou Ficcional.
3º. Independente do gênero ou da vertente a que se ligue a narrativa, esta pode apresentar-se em uma de três diegeses do romance: fechado, aberto ou fechado-aberto.
Sendo o romance uma das categorias favoritas dos leitores acredito ser útil e necessária uma compreensão mais abrangente de seus aspectos constituintes e espero ter colaborado para tanto.
Glaucio Cardoso
REFERÊNCIAS E NOTAS
1 - TAVARES, Hênio. Teoria literária. 6ª Ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978, p. 121.
2 - Vale ressaltar que a palavra romance torna-se de uso corrente principalmente em português e francês, enquanto que em inglês o que chamamos romance é denominado novel.
3 - AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Vol. I. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 1982.
4 - Sabemos por intermédio de Kardec e André Luiz que o contato entre encarnados e desencarnados é constante e ininterrupto. A classificação proposta não exclui de maneira alguma esse conceito, apenas nos serve para diferençar os textos cuja influência espiritual é clara dos que são fruto do talento do espírito encarnado.
5 - HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura (Sozialgeschichte der kunst und literatur). Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 791.
Discurso extremamente analítico e instrutivo, caro Gláucio. Muito aprendi sobre a arte espírita.
ResponderExcluirParticularmente interessante é a definição de naturalismo transcendental, mormente devido a tensão criativa emanada da combinação das duas palavras. É que natureza imediatamente evoca a ideia de algo não-transcendental, algo imanente. No entanto, o que é transcendente segundo a perspectiva do plano inferior pode ser imanente e natural segundo a perspectiva do plano superior. Tal possibilidade justifica e torna patente a propriedade da expressão.
Fica para uma próxima conversa pessoal o seguinte debate, amigo: haverá o transcendental enquanto tal de pertencer também ao humano, ou será atributo somente do ser supremo? Em outras palavras: somente deus possui uma transcendentalidade acima de toda a naturalidade, justamente por ser sobrenatural? Como os romances espíritas tendem a tratar dessa questão? Meu interesse reside na relação direta entre a resposta a tal pergunta e o problema da possibilidade do livre-arbítrio.
Grande abraço!