quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Para que poetas em tempos de inteligência artificial?

 Para Alberto Pucheu e suas fronteiras


Já havíamos criado os computadores,

o preservativo descartável,

a máquina vapor e a roda dos enjeitados.

Já domináramos o fogo,

os átomos e os outros.

Já tínhamos conseguido ligar o mundo todo

numa só tomada (e que não era a de consciência)

e havíamos reduzido o horizonte

ao retângulo líquido a que nos acorrentamos.

Só o que faltava era oficialmente entregar à máquina

o que antes era nosso privilégio.

A falsa sensação de facilidade

nos cega para o que ocorre diante de nossos olhos.

As mesmas empresas que acusam de pirataria

aqueles que baixam filmes e livros e músicas e HQs

são aquelas que investem em algoritmos que pilham

as artes alheias e constroem frankensteins de partes canibalizadas.

Para que poetas em tempos de inteligência artificial?

Basta teclar meia dúzia de comandos

e o texto surge pronto,

carregado de clichês confortáveis,

mas o poema verdadeiro e humano

deverá sempre representar o incômodo e o inconformismo.

Atrás do algoritmo que impõe o alucinado ritmo da produtividade e rapidez,

esconde-se o projeto trevoso da eliminação da alma humana.

Não escrevemos ou lemos poesia

na busca cômoda do que nos parece conforto.

Escrevemos e lemos poesia para que

alcancemos o logro e o engodo,

para trapacear contra um mundo

que a cada dia deseja nos reduzir

a cidadãos consumidores produtivos.

Escrevemos e lemos poesia

como um gesto libertário que não se pode conter

em comandos prontos de quem tem ódio por aqueles

que escrevem e leem poesia.

Somos poetas e resistentes,

talvez nunca vencedores, porém sempre insubmissos.

Escrevemos nossos poemas em blocos de papel ou de ideias,

lemos poesia em livros,

em blogs,

em posts,

em postes,

em muros

e nas conduções.

No alvorecer do que promete ser o ocaso da individualidade,

o gesto simples de escrever em papel

é ato de insubordinado;

o gesto simples de criar rimas líricas

é ato de insubordinado;

o gesto simples do improviso, do repente, do slam

é ato de insubordinado;

o gesto simples de se declarar poeta

é ato de insubordinado.

Insubordinados somos todos nós,

os que resistimos e persistimos

em criações inteligentemente artificiosas

carregadas da ilusão do espontâneo

e, ainda assim, mais sinceras, verdadeiras e vicerais

do que quaisquer roubos perpetrados

por algoritmos incapazes de compreender

a verdade ficcionalizada no mais profundo de nós.

Escrevemos e lemos poesia por sabermos

que pedir ao algoritmo que faça aquilo

a que falsamente alguns têm dado o nome de “arte”

equivale a menosprezar o sacrifício de Prometheus

e entregar o fogo sagrado não de volta aos deuses,

mas aos torpes homens de negócios.

Para que poetas em tempos de inteligência artificial?

É a pergunta que mesmo ao ser formulada

parece impossível de ser dita.

E a resposta talvez se mostre

mais pelo gesto que pela palavra.

Você, eu, cada um de nós que ainda insistimos

em escrever e ler poesia,

contra todo o horror,

contra todos os extremos,

contra todo o mecanicismo,

somos a prova e a esperança

de que algo há de persistir e de sobreviver

a estes tempos de desumanização

que se abate sobre nós.

Glaucio Cardoso

entre maio e agosto de 2025

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