quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Memórias de um amante da poesia – 03

 Poesia: A arte do encontro

Em geral, poetas são vistos como seres solitários e individualistas. Há até quem nos julgue egocêntricos. Há certa verdade nessa visão, pois a poesia é uma arte que permanece, em grande parte, no terreno do sujeito, de onde vem “subjetividade”, empregada para definir a visão de mundo de uma única pessoa.

Vem daí a ideia comumente difundida de que o poeta nasce e escreve imerso na solidão.

Talvez surpreenda ao senso comum a informação de que poetas são também extremamente afeitos à coletividade. Adoram se encontrar para discutir versos, próprios e alheios, ler poemas uns para os outros, comparar textos, etc.

A poesia proporciona sempre os mais inusitados encontros entre poetas e leitores, entre poetas e poetas, entre leitores e leitores.

Quanto aos encontros entre poetas, é sempre um momento agradável, apesar de também marcado por certo nível de conflito, quando aqueles que se dedicam a escrever versos têm a oportunidade de se juntar. Esses encontros não se dão apenas nos eventos como saraus e lançamentos de livros, mas podem acontecer até no acaso de cada dia, num corredor de shopping, num café.

Uma vez, me recordo agora, estava atravessando uma rua na cidade vizinha à minha, voltando nem me lembro de onde, quando ouvi alguém gritando “Salve o poeta de Mesquita!”. Virei-me para o ponto de onde vinha a voz e dei de cara com o sorriso sempre contagiante do poeta Macedo de Moraes (o Griot!), a quem tanto admiro, que me abria os braços. E ali, naquele abraço não programado, em meio aos sons estridentes que caracterizam as nossas cidades, reafirmamos nossa fraternidade de poetas, de amantes dos versos.

Em outras ocasiões pude me encontrar com poetas em eventos, entrevistas e saraus. Alguns membros dessa confraria são muito próximos, outros apenas conhecidos. Há aqueles que lia muito antes de começar a escrever meus próprios versos, como Moduan Matos, Jorge Rocha e João Prado; outros que fui descobrindo em minha formação de poeta, como Alberto Pucheu, Maurício Keller e Merlânio Maia; e aqueles que mais recentemente aportaram em minhas leituras, como Luiz Otávio Oliani, Elciomar Rocha e Alberto Centurião.

A cada encontro, trocamos ideias sobre o que estamos lendo e escrevendo, dividimos sucessos e fracassos, e criamos expectativas quanto aos próximos textos e encontros.

Para um poeta, é sempre gratificante o encontro com seu(s) leitor(es). Saber como um texto que saiu de sua cabeça encontra novos significados para outras pessoas. Descobrir que elas podem admirar um poema que muitas vezes não recebe muita consideração de quem o escreveu.

Mas o encontro entre poetas e leitores apresenta ainda uma dimensão inusitada que é formada por atemporalidade e desterritorialização.

Como leitor de poesia, já pude dialogar com autores que vivem em lugares dos mais distantes. Atualmente tenho acompanhado um poeta português de nome João Negreiros. Seus poemas me chegam do outro lado do oceano. É pouco provável que um dia nos encontremos pessoalmente. Entretanto ele é alguém com quem dialogo, graças aos seus textos nos quais nos encontramos. O mesmo se dá com Bruna Mitrano, poeta do mesmo estado que o meu, mas com quem só me avistei por intermédio de seus poemas viscerais.

Há aqueles poetas que me chegam vindos de outros tempos. García Lorca, Alfonsina Storni, Konstantinos Kaváfis. Apesar de há muito tempo terem deixado seus corpos para trás e ido “estudar a geologia dos campos santos”, estes poetas são meus contemporâneos, são meus amigos.

E agora percebo que nem mesmo a língua poderá ser uma barreira que impeça os encontros poéticos. Sempre, ou quase sempre, podemos contar com as traduções e também, no meu caso, há aqueles poetas que escrevem em inglês e em espanhol e que consigo ler em suas originalidades.

Talvez seja esse o objetivo primordial da poesia: promover encontros; romper barreiras temporais, geográficas, linguísticas; pôr um fim à solidão na qual muitas vezes nos vemos imersos.

A poesia é, assim como a vida, a arte de promover encontros apesar de, e graças à, tantos desencontros.

2 comentários:

  1. Super amei o texto. Me identifiquei bastante e fiquei muito feliz por me enquadrar nas definições do nobre poeta, escritor, professor e amigo virtual, Gláucio Cardoso. Abraço com rima, faça inverno ou calor, com confete e serpentina e cobertura de amor. Iza Santos - 10/11/2022

    ResponderExcluir
  2. É isso poeta!

    Deslocados do tempo presente e do território com suas adjacências, vemos a realidade a partir de alguma dimensão própria e singular para, em seguida, pousarmos em algum tempo presente territorializado com toda a nossa subjetividade abrindo diálogos e festejos que permanecem abertos no infinito.

    Mediados pelo vento, pelos papéis, pelos bits e bytes do mundo digital e pelas ondas da internet, gracejmos afetando o mundo e recolhendo inspirações que nos afetam e alimentam.

    Poetas famintos e glutões, circunscritos no infinito sem limites territoriais ou temporais, seguimos provocando o mundo com nossas subjetividades, alimentando nossa essência vital, ampliando nossa expressão espiritual e festejando a vida.

    Talvez vejamos os poetas como criaturas egocêntricas porque eles não cabem nas lentes usadas. Lentes que se limitam à luz do espectro visível...

    A expressão de um poeta é tão grande quando o universo! Eles dialogam com a vida através das vivências com as pessoas e com a natureza através do tempo...

    O que seria um segundo para um poeta? Talvez seja tempo suficiente para ler o universo e preparar o próximo Big Bang!

    Neste movimento, quando corações se encontram em alguma coordenada do universo que pode ser medida pela consciência, atravessamos a rua, abraçamos amigos, declamamos poesias e seguimos nosso caminho com um sorriso festivo no peito.

    ResponderExcluir