Se
você ainda não viu o filme Carlos de Assumpção: Protesto, pare
de ler esse texto agora e vá assisti-lo.
Nada
do que eu venha a dizer a respeito da acalentada película de Alberto Pucheu
poderá dar conta da força que emana das imagens captadas por sua câmera, por
seu olhar; a força que jorra das palavras do poeta que nos é apresentado como
um presente necessário, incontornável para todos os estudiosos e amantes da
poesia.
Já
faz algum tempo que Pucheu vem se dedicando à realização de documentários
enfocando poetas que compõem algumas das cenas poéticas da contemporaneidade.
Foi assim que tivemos a oportunidade de acompanhar a evolução de sua linguagem
audiovisual, que parece perseguir a presentificação do distante, um projeto
cujo desenvolvimento pode ser acompanhado em Leonardo Fróes, um animal na montanha (2017), Vicente Franz Cecim: um
anima na floreta (2017), e os vídeos da série Autobiografias poético-políticas
(2019): André Luiz Pinto: Prazer,
esse sou eu, Tatiana Pequeno:
muambas e bombas para o nosso tempo, Bruna
Mitrano: a 70km do mar e Danielle Magalhães:
Carta aos Sobreviventes.
Nestes
filmes, representantes das novas possibilidades que a tecnologia nos
proporciona com a facilidade de difusão de conteúdos, já fica clara a intenção
de fazer chegar a todos os lugares os poetas que não mais precisam retirar-se
de seus lugares de origem para que sua poesia seja conhecida. São vozes de
gerações distintas se encontrando, tendo em comum o sentido de que poesia e
vida são, por definição de ofício, indistinguíveis.
E de repente, não mais que de repente, somos
surpreendidos com a poesia de Carlos de Assumpção, tão diferente das obras dos
poetas apresentados nos filmes anteriores. Enquanto naqueles é visível um
hermetismo estético, embora com notáveis traços biográficos recriados
poeticamente pelos autores, neste poeta vemos uma linguagem simples, direta,
não muito afeita ao excesso de metaforização, servindo ao engajamento, buscando
uma comunicação imediata com o leitor/ouvinte.
Mesmo
que voltem as costas
Às
minhas palavras de fogo
Não
pararei de gritar
Não
pararei
Não
pararei de gritar
Assim
inicia o poema de Carlos de Assumpção que dá título ao filme. Em um texto
publicado no portal da Revista
Cult, e em diversas postagens feitas no facebook, Alberto Pucheu dá a
entender que topou com o poema por acaso enquanto fazia uma pesquisa para a
mesma Revista Cult. Como por formação filosófico-religiosa não creio na
existência do acaso, assumirei como verdade particular que o poema chegou-lhe
em momento oportuno, um momento necessário para sua (re)descoberta.
Pensar
que tal poema foi escrito na década de 50 nos coloca diante de um hiato, um
paradoxo. Um poema cujo grito reverbera através do tempo, dirigindo-se tanto ao
passado quanto ao futuro, ecoando no presente com o frescor das grandes
mensagens.
Estará
equivocado quem pensar que a simplicidade da poesia de Carlos de Asssumpção é
um traço que lhe apequena. Se o poeta abre mão da metaforização, é para assim
fazer poesia do mais alto nível, daquele tipo que provoca, que incomoda, que
nos tira da zona de conforto e nos faz pensar criticamente:
[...]
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que esta gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é
E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vitima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do País
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que esta gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é
E eu responderei
Sou eu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vitima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do País
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
[...]
Seu
Carlos, impossível não chamá-lo assim, com a familiaridade que sua figura imponente
nos alcança, é mais do que apenas poeta, é a representação da ancestralidade
tornada humano, um griot urbano,
guardião de uma memória tantas vezes ignorada pela história oficial.
Herdeiro da história de
reis que foram escravizados, herdeiro da memória dos marginalizados por uma
Abolição que nunca veio de fato, o poeta questiona o discurso oficial de uma
história contada do ponto de vista do opressor branco, rendendo respeito aos
Orixás e aos Ancestrais, igualados pelo tempo e pela transcendência que atingem:
Os
meus avós foram fortes
Foram
fortes os meus avós
Orgulho-me
dos meus avós
Que
outrora
Carregaram
sobre as costas
A
cruz da escravidão
[...]
Há
muitas histórias
Sobre
os meus avós
Que
História não faz
Questão
de contar
É
a história
Dos
que desesperados
Se
atiravam dos navios
No
abismo do oceano
E
eram acalentados
Por
Iemanjá
[...]
Não
me venham dizer
Que
os meus avós foram
Escravos
submissos
Por
favor não me venham dizer
Eu
não aceito mentiras
Cortarei
com a espada
Dos
meus versos
A
cabeça de todas as mentiras
Mal
intencionadas
Com
que pretendem humilhar-me
Destruir
o meu orgulho
Falseando
também
A
história dos meus avós
[...]
Com
os pés fincados na memória e o olhar lançado ao futuro, Seu Carlos não se furta
a pensar nosso presente em poemas que bradam perguntas emblemáticas de nosso
tempo como
Quem
mandou matar Marielle,
A
nossa nova Dandara?
Quem
mandou matar Marielle,
A
enviada de Ogum?
Quem
tem ceifado tantos sonhos?
Quem
tem coberto todo o país?
Com
tantas mortes sem explicação?
Quem
tem matado gente inocente e culpada?
Há
no ar silêncio enorme,
Não
há nenhuma resposta.
Será
que a justiça dorme
Ou
a justiça está morta?
E
ao unir passado e presente na construção do futuro, Seu Carlos convoca Zumbi do
Palmares, esse ancestral tornado força primordial, como o representante de um
novo mito fundador, um mito do retorno, algo como a versão dos excluídos para o
Sebatianismo.
Quando
Zumbi voltar
Com
a lança na mão
Vai
botar pra correr
Esse
povo engravatado
Arrogante
e valentão
Que
se julga dono exclusivo
De
tudo aqui
Que
humilha e discrimina
Negro,
índio e branco pobre...
Contrariando
uma leitura superficial que alguns poderiam vir a fazer, Seu Carlos evoca “Negro,
índio e branco pobre” como sendo todos seus iguais, seja nesse poema, seja em
uma espécie de bordão que não se cansa de repetir
Eu
sou Carlos de Assumpção,
Eu
sou irmão de todo mundo
E
todo mundo é meu irmão.
E o mais que se pode
falar é parabenizar e agradecer ao poeta-cineasta Alberto Pucheu por seu
empenho em difundir a obra de Carlos de Assumpção, preenchendo essa [até então]
lacuna imperdoável na história da poesia brasileira.
Glaucio Cardoso
Carlos de Assumpção: Protesto Direção: Alberto Pucheu & Danielle Magalhães Ano: 2019 Duração: 83 min. Cartaz de Luis Saguar |
Obrigado pela boa dica!
ResponderExcluir