segunda-feira, 1 de abril de 2019

Versos contra o terror


Ao refletir a respeito do mundo atual com todas as suas implicações e conflitos ideológicos, Alberto Pucheu escreveu aquele que bem pode ser o mais importante poema das duas primeiras décadas do século XXI
“na disputa entre o estado e o terrorismo,
na conciliação do estado com as empresas
pelo lucro do capital acima de tudo,
na sobreposição do templo com o banco
dispondo a cada momento da fé ou do crédito
de todo exército com as armas em sua defesa,
na definição do dinheiro (que já foi chamado
de homem) como o único animal que bombardeia,
fico com as pessoas comuns, quaisquer,
com os rios, os bichos e as matas, com o que sentem
na pele até não serem mais capazes de sentir.”

            Na abertura do poema que dá título a uma de suas mais impressionantes publicações, Alberto
Capa da edição da
Azougue
Pucheu destaca o tempo-espaço no qual nos movimentamos ora invisíveis ora vigiados, como se fosse possível/necessário ao poeta-observador que ele é o estabelecimento de um lugar de embate, um lugar de tomada de posição. É um poema de tal força e magnitude que me sinto, a um só tempo, impelido a escrever sobre ele e também impedido de grandes elucubrações teóricas.
            Que resta dizer? Que posso falar a respeito desse texto que não vá destruir-lhe a riqueza? Escrever sobre um poema deveria até mesmo ser considerado crime, ou a iminência de um crime, uma vez que nos expomos ao risco de arrastá-lo ao lugar comum das palavras do dia a dia.
            Ainda assim não resisto e faço eco das palavras de Pucheu ao dizer que

“terrorista, hoje, é o outro, o que, coisificado, escapa
às diversas escalas, maiores ou menores,
da época do pau de selfie que vivemos”.

            Esta época que por si só já nos institui o terror de perdermos nossa humanidade, mas que ao mesmo tempo nos impele a abrir mão do indivíduo que somos em função de interesses outros que não os da plena realização de nossas capacidades e possibilidades.
            Se todo grande poema é múltiplo, se para ser grande, um poema precisa ser a um só tempo denúncia e arte, combinando estética ao conteúdo, então o poema em questão é exemplo da mais alta poesia, não uma poesia beletrista, não uma poesia ingênua, não uma poesia comportada e confortável, convidativa à contemplação, mas sim uma poesia que é grito, que é brado, que nos tira de nossa zona de conforto e nos faz ferver o sangue.
            “terrorista é o outro”, esse parece ser o mote esparramado por todo o corpo do poema, é também o mote que permeia todo o livro ao qual deu nome. E quem é esse outro? Quem é esse que mete tanto medo por insuflar o terror sinônimo de escapar aos rótulos socialmente aceitos?

“[...] o oriente é terrorista, a áfrica
é terrorista, a natureza é terrorista, manifestantes
são terroristas, professores são terroristas,
alunos são terroristas, educação é terrorista,
bebês são terroristas, negros são terroristas,
pobres são terroristas, índios são terroristas,
catadores de latas são terroristas,
travestis são terroristas, transexuais
são terroristas, mulatos, albinos e mosquitos
são terroristas, mulheres são terroristas,
homens são terroristas, como são terroristas...”

            O poema se desdobra em múltiplas mostras do terrorismo que nos submete ao estado de letargia e inumanidade de nossos tempos. Dos acordos obscuros que inocentam donos de mineradoras aos acordos não tão ocultos que acarretaram a derrubada de uma presidente, passando pela hostilidade a estudantes de escolas públicas que as ocupam como forma de protesto contra as péssimas condições a que a educação (terrorismo dos mais perigosos) é submetida pelas atitudes espúrias de governantes apartados do povo que os elege.
            As camadas de uma sociedade em convulsão vão sendo expostas pelo olhar arguto do mais terrorista de todos os indivíduos, e digo mais terrorista por ser o que está mais à parte de tudo e que por esse motivo é o outro mais outro que há: o poeta.
            Um poema não põe comida na mesa; não dá dinheiro; não transforma ninguém em celebridade. Ainda assim, nunca houve tempos sem poetas. Um poema talvez pareça deslocado em um contexto no qual luta-se pela sobrevivência em meio a crises econômicas, crises políticas, crises sociais, crises morais. Um poema parece sem lugar quando políticos vociferam uns contra os outros e todos eles tramam contra o povo que os sustenta. Um poema talvez não tenha lugar em uma metrópole ilhada em meio ao fogo cruzado de facções criminosas contrárias e ao serviço da “lei e ordem” numa terra sem lei.
            Ainda assim, os poetas resistem. Ainda assim não há tempos mais necessitados da força da poesia que os tempos de terrorismos nos quais nos debatemos.
            O poeta é terrorista, pois combate o terror ao qual pessoas comuns são submetidas dia após dia por um sistema que nos engana com ideias de igualdade de condições e de oportunidades.
            “([...] ninguém nasce homem-bomba, / como ninguém nasce poeta).” Mais que uma constatação, um aviso, um aceno a todos aqueles que acreditam na força das palavras e das ideias. O efeito da ação de um homem-bomba é imediato e passageiro; a explosão provocada por um poeta é duradoura e eterna, ainda que silenciosa no seu tempo de produção.
Alberto Pucheu
(Foto: Marcelo Correa)
            Para que poetas em tempos de terrorismos?
            Para que possamos, ainda que sem nos dar conta, manter viva a chama de humanidade que se pretende, sempre, revolucionária.

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