Ao refletir a respeito do mundo
atual com todas as suas implicações e conflitos ideológicos, Alberto Pucheu
escreveu aquele que bem pode ser o mais importante poema das duas primeiras
décadas do século XXI
“na
disputa entre o estado e o terrorismo,
na
conciliação do estado com as empresas
pelo
lucro do capital acima de tudo,
na
sobreposição do templo com o banco
dispondo
a cada momento da fé ou do crédito
de
todo exército com as armas em sua defesa,
na
definição do dinheiro (que já foi chamado
de
homem) como o único animal que bombardeia,
fico
com as pessoas comuns, quaisquer,
com
os rios, os bichos e as matas, com o que sentem
na
pele até não serem mais capazes de sentir.”
Na abertura do poema que dá título a
uma de suas mais impressionantes publicações, Alberto
Pucheu destaca o tempo-espaço
no qual nos movimentamos ora invisíveis ora vigiados, como se fosse
possível/necessário ao poeta-observador que ele é o estabelecimento de um lugar
de embate, um lugar de tomada de posição. É um poema de tal força e magnitude
que me sinto, a um só tempo, impelido a escrever sobre ele e também impedido de
grandes elucubrações teóricas.
Capa da edição da Azougue |
Que resta dizer? Que posso falar a
respeito desse texto que não vá destruir-lhe a riqueza? Escrever sobre um poema
deveria até mesmo ser considerado crime, ou a iminência de um crime, uma vez
que nos expomos ao risco de arrastá-lo ao lugar comum das palavras do dia a
dia.
Ainda assim não resisto e faço eco
das palavras de Pucheu ao dizer que
“terrorista,
hoje, é o outro, o que, coisificado, escapa
às
diversas escalas, maiores ou menores,
da
época do pau de selfie que vivemos”.
Esta época que por si só já nos
institui o terror de perdermos nossa humanidade, mas que ao mesmo tempo nos
impele a abrir mão do indivíduo que somos em função de interesses outros que
não os da plena realização de nossas capacidades e possibilidades.
Se todo grande poema é múltiplo, se
para ser grande, um poema precisa ser a um só tempo denúncia e arte, combinando
estética ao conteúdo, então o poema em questão é exemplo da mais alta poesia,
não uma poesia beletrista, não uma poesia ingênua, não uma poesia comportada e
confortável, convidativa à contemplação, mas sim uma poesia que é grito, que é
brado, que nos tira de nossa zona de conforto e nos faz ferver o sangue.
“terrorista é o outro”, esse parece
ser o mote esparramado por todo o corpo do poema, é também o mote que permeia
todo o livro ao qual deu nome. E quem é esse outro? Quem é esse que mete tanto
medo por insuflar o terror sinônimo de escapar aos rótulos socialmente aceitos?
“[...]
o oriente é terrorista, a áfrica
é
terrorista, a natureza é terrorista, manifestantes
são
terroristas, professores são terroristas,
alunos
são terroristas, educação é terrorista,
bebês
são terroristas, negros são terroristas,
pobres
são terroristas, índios são terroristas,
catadores
de latas são terroristas,
travestis
são terroristas, transexuais
são
terroristas, mulatos, albinos e mosquitos
são
terroristas, mulheres são terroristas,
homens
são terroristas, como são terroristas...”
O poema se desdobra em múltiplas
mostras do terrorismo que nos submete ao estado de letargia e inumanidade de
nossos tempos. Dos acordos obscuros que inocentam donos de mineradoras aos
acordos não tão ocultos que acarretaram a derrubada de uma presidente, passando
pela hostilidade a estudantes de escolas públicas que as ocupam como forma de
protesto contra as péssimas condições a que a educação (terrorismo dos mais
perigosos) é submetida pelas atitudes espúrias de governantes apartados do povo
que os elege.
As camadas de uma sociedade em
convulsão vão sendo expostas pelo olhar arguto do mais terrorista de todos os
indivíduos, e digo mais terrorista por ser o que está mais à parte de tudo e
que por esse motivo é o outro mais outro que há: o poeta.
Um poema não põe comida na mesa; não
dá dinheiro; não transforma ninguém em celebridade. Ainda assim, nunca houve
tempos sem poetas. Um poema talvez pareça deslocado em um contexto no qual
luta-se pela sobrevivência em meio a crises econômicas, crises políticas,
crises sociais, crises morais. Um poema parece sem lugar quando políticos
vociferam uns contra os outros e todos eles tramam contra o povo que os
sustenta. Um poema talvez não tenha lugar em uma metrópole ilhada em meio ao
fogo cruzado de facções criminosas contrárias e ao serviço da “lei e ordem”
numa terra sem lei.
Ainda assim, os poetas resistem.
Ainda assim não há tempos mais necessitados da força da poesia que os tempos de
terrorismos nos quais nos debatemos.
O poeta é terrorista, pois combate o
terror ao qual pessoas comuns são submetidas dia após dia por um sistema que
nos engana com ideias de igualdade de condições e de oportunidades.
“([...] ninguém nasce homem-bomba, /
como ninguém nasce poeta).” Mais que uma constatação, um aviso, um aceno a todos
aqueles que acreditam na força das palavras e das ideias. O efeito da ação de
um homem-bomba é imediato e passageiro; a explosão provocada por um poeta é
duradoura e eterna, ainda que silenciosa no seu tempo de produção.
Alberto Pucheu (Foto: Marcelo Correa) |
Para que poetas em tempos de terrorismos?
Para que possamos, ainda que sem nos
dar conta, manter viva a chama de humanidade que se pretende, sempre,
revolucionária.
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