A Doutrina Espírita é um manancial inesgotável donde a humanidade pode sorver ideias e temas, proporcionando aos seres uma fonte riquíssima para seu aprimoramento pessoal e para sua expressão livre. Sua máxima beleza se manifesta no fato de estar à disposição de todos, independentemente de orientação filosófico-religiosa. É o que constantemente me vem ao pensamento quando encontro os conceitos espíritas disseminados em meios que não possuem nenhuma ligação aparente com a Doutrina como, por exemplo, o universo literário.
Foi o que me aconteceu recentemente ao ler uma carta de Manuel Bandeira (1886-1968) ao amigo Odylo Costa, Filho¹. A carta (sem data) foi publicada no número 8 da revista Poesia Sempre² e serviu de elemento motivador para a presente análise. Primeiro vamos nos deter no trecho inicial da referida carta:
Odylo querido
A Yeda³, viúva do Schmidt4, tem se revelado melhor administradora do que o Schmidt. Há dias ela quis tirar umas dúvidas sobre os negócios do espólio e lembrou-se de evocar o espírito do falecido numa sessão espírita. Mas quem se apresentou não foi o Schmidt, mas sim o Ovalle5, que disse, entre outras coisas, essas palavras “Aqui estamos todos nus”, e tanto a Yeda como o Dante Milano6 reconheceram essa coisa autêntica do Ovalle. Dante tentou fazer um poema sobre, mas não conseguiu. Então eu pus mãos à obra e saíram as quadrinhas supra. (1997: 328-9)
A simples referência feita por um dos maiores nomes da poesia brasileira à realização de uma sessão espírita tendo envolvidos os nomes de outras não menos relevantes personalidades artísticas e intelectuais (ver notas) já seria motivo suficiente para que o pesquisador espírita se sentisse tentado a compreender os detalhes desta reunião.
Não será este o foco do presente texto, pois não me vejo detentor de condições intelectuais para proceder a uma pesquisa histórica de tal vulto. Prefiro voltar minha atenção para as “quadrinhas” mencionadas por Bandeira. Trata-se, na verdade, do poema “Mensagem do Além”. O poema apresenta como epígrafe a frase atribuída ao espírito Jaime Ovalle que também serve como último verso de cada quadra.
Aqui é tudo o que olhamos
Nu como o céu, como a cruz,
Como a folha e a flor nos ramos:
Aqui estamos todos nus.
As vestes que aí usamos
Nada adiantam. Se o supus,
Se o supões, nos enganamos:
Aqui estamos todos nus.
Dinheiro que aí juntamos,
Jóias que pões (e eu já as pus),
De tudo nos despojamos:
Aqui estamos todos nus.
Aqui insontes nos tornamos
Como antes do pecado os
De quem todos derivamos,
Aqui estamos todos nus.
Aos pés de Deus, que adoramos
Sob a sempiterna luz,
É nus que nos prosternamos:
Aqui estamos todos nus.
Este belíssimo poema começa com um panorama do mundo espiritual que nos remete diretamente aos relatos obtidos via mediúnica e que dão conta da simplicidade com que as coisas se apresentam no mundo espiritual. Lembrando a série de livros do espírito André Luiz, pela psicografia de Chico Xavier, encontramos em várias passagens a alusão à eliminação do supérfluo, com objetos, móveis e construções atendendo sempre ao bom gosto e praticidade.
Na segunda estrofe vemos toda a inteligência e sensibilidade do poeta ao substituir aparência por vestes, em uma clara referência à diferença existente entre o mundo material onde somos capazes de disfarçar nosso íntimo perante os homens e a verdadeira essência revelada no pós-morte. Nisto o poeta estabelece ainda um diálogo com outro genial autor de nossa língua: Machado de Assis, que em Memórias Póstumas de Brás Cubas põe nos lábios de seu defunto-autor uma pérola de sabedoria. A passagem é longa, mas vale à pena ser lida:
Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, a força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! (2008 [1881]: 657-8)
Que sensibilidade e semelhança a desses dois trechos separados por quase um século de história, demonstrando a inutilidade das máscaras sociais que todos nós utilizamos; e que identidade perfeita com o conhecimento espírita.
A terceira estrofe traz-nos à lembrança o Cap. XVI, item 14, de O Evangelho Segundo o Espiritismo, onde o espírito Lacordaire tece importantes considerações a respeito do desprendimento dos bens terrenos. Particularmente encontro no poema de Bandeira um eco destas palavras:
Em vão procurais na Terra iludir-vos, colorindo com o nome de virtude o que as mais das vezes não passa de egoísmo. Em vão chamais economia e previdência ao que apenas é cupidez e avareza, ou generosidade ao que não é senão prodigalidade em proveito vosso. (2006[1864]: 300-1)
Prosseguindo em suas considerações, o eu lírico aponta para a inocência (Aqui insontes nos tornamos) do espírito após a morte do corpo físico. Embora possa ser lido com uma alusão ao mito adâmico (Como antes do pecado os / De quem todos derivamos) não deixa de ser interessante notar que ao compulsarmos a Codificação encontramos a afirmação de que somos criados simples e ignorantes (L.E. – perg. 115), portanto sem pecado. Não somos descendentes de Adão e Eva, mas de nós mesmos, de nossas escolhas.
A última estrofe nos traz um belo resumo do que encontramos no Livro III, Capítulo II de O livro dos espíritos, o qual trata da Lei de Adoração. Se nos detivermos nas perguntas 653 e 653-a, veremos que ali o Espírito Verdade assevera que “A verdadeira adoração é a de coração” e que toda manifestação deste sentimento inato ao ser humano é válida e útil “se não for um vão simulacro”, i.e., um fingimento, um ato puramente exterior. O eu lírico do poema de Bandeira afirma que “É nus que nos prosternamos”, afirmando a sinceridade deste ato de submissão ao Criador, em perfeita sintonia com a Doutrina Espírita.
Propositalmente deixei por último o verso que motivou o poema de Bandeira e o presente texto: “Aqui estamos todos nus”.
Para não alongar por demais um texto que corre o risco de tornar-se enfadonho, limito minhas elucubrações a um cotejo da frase em questão com algumas passagens do livro Nosso Lar, cuja primeira edição veio à lume em 1944.
No capítulo 14 (“Elucidações de Clarêncio”), a palavra do ministro expõe o íntimo do espírito André Luiz de forma clara e direta: “Já sei. Verbalmente pede qualquer gênero de tarefa; mas, no fundo, sente falta dos seus clientes, do seu gabinete, da paisagem de serviço com que o Senhor honrou sua personalidade na Terra.” (1996: 81) [grifos meus].
Como se vê, a nudez do espírito após o desencarne é aqui exposta pela observação de um terceiro que, pleno de autoridade moral e espírito de caridade, elucida os impulsos interiores que nos acostumamos a hipocritamente mascarar durante a experiência no corpo físico.
Em vários outros capítulos a nudez do ser é posta em evidência como, por exemplo, no de número 31 (“Vampiro”), que tem sido apontado como um dos mais chocantes pela maneira como é elucidada a real condição do espírito que envereda pelos caminhos do aborto criminoso e que em vão busca ocultar-se sob a capa da virtude.
A nudez do espírito atinge seu grau máximo quando este olha dentro de si mesmo e reconhece suas falhas, como acontece no capítulo 33, onde André Luiz analisa que “examinando desapaixonadamente minha situação de esposo e pai, reconhecia que nada criara de sólido e útil no espírito de meus familiares.” (1996: 181), ou quando ao encontrar-se com aqueles a quem prejudicara em sua última passagem na terra, mostra-se incapaz de fugir à lembrança de seus erros e busca o perdão dos que lhe sofreram os atos cegos, seja pela sincera exposição verbal (Cap. 35 – “Encontro singular”), seja pela doação abnegada no trabalho em favor destes (Cap. 40 – “Quem semeia colherá”).
Estar a nu perante a eternidade é um dos meios pelos quais a alma evolui moralmente, como se nota na postura de André diante do segundo esposo daquela a quem deixara viúva como conseqüência de seus abusos: “De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças,[...]”, imagem forte por nos remeter ao lugar comum no qual todos nos achamos mergulhados; imagem igualmente bela por representar a sinceridade do narrador ao revelar seu impulso; imagem sublime quando vemos sua continuidade “[...] mas já não era eu o mesmo homem de outros tempos. O Senhor me havia chamado aos ensinamentos do amor, da fraternidade e do perdão.” (1996: 272). A nudez do espírito é dos caminhos para sua evolução.
Simplicidade, adoração, humildade, evolução, fé. Elementos que se encontram no íntimo do ser e que necessitam de que este se despoje de vícios, máscaras e comportamentos viciosos para que surjam em sua plenitude. O poema de Manuel Bandeira nos mostra que os conceitos espíritas já fazem parte da cultura humana, bastando apenas que sejam realmente compreendidos e vivenciados de modo que o espírito imortal, desencarnado ou encarnado, tenha a postura de nudez que o levará no caminho da evolução.
NOTAS
1 - Odylo Costa, Filho (1914-79) – Jornalista, cronista, novelista e poeta brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras.
2 - Yedda Ovalle Lemos – Esposa de Augusto Frederico Schmidt; sobrinha de Jayme Ovalle. Consta que era dotada de forte sexto sentido que a levava a intuir o caráter das pessoas e que estudou budismo e praticou yoga. Nota: na carta de Bandeira seu nome aparece grafado incorretamente com apenas um “d”.
3 - Augusto Frederico Schmidt (1906-65) – Poeta, político e homem de negócios, ficou conhecido como o “gordinho sinistro” da literatura Brasileira.
4 - Jaime Ovalle (1894-1955) – Compositor e poeta brasileiro.
5 - Dante Milano (1899-1991) – Poeta e tradutor.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Machado de. Obra Completa em quatro volumes. Vol. 1. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, 657-8.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.245-6.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Poesia Sempre. Rio de Janeiro: FBN, 8, jun. 1997.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos (Le livre des esprits). Edição Especial. Trad. de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2006.
XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Pelo espírito André Luiz. 45ª Ed. Rio de Janeiro: FEB, 1996.
Lindo poema, Poeta,
ResponderExcluirEu já o conhecia, pois fui leitor de Bandeira na minha juventude.
Na Semana de Arte Moderna de 22, Bandeira não esteve presente, porém seu lindo poema "Os Sapos", foi lido e escupiu o espírito da Semana, pois todos se impressionaram com a revolução crítica da poesia, cutucando os parnasianos.
Muito legal, poeta.
Bandeira mantém-se no estandarte da Arte Brasileira e com este poema, mostra que tinha conhecimento da prática mediúnica, em sua simplicidade trazendo-nos um retrato da simplicidade do mundo espiritual.
Mais tarde, Gilberto Gil vai dizer algo parecido em sua música "SE EU QUISER FALAR COM DEUS" [...] TER A ALMA E O CORPO NUS![...]
Legal!
Abração!
Merlânio Maia
João Pessoa/PB
http://www.merlaniomaia.com/
Gláucio. Fantástico texto. POderia reproduzir em meu BLOG espírita? Abraços fraternais!
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