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Analisando
músicas espíritas –
Uma
Prece (OUVIR)
Willi
de Barros Gonçalves
João
Bosco de Carvalho
Uma
categoria musical muito difundida nos meios religiosos é conhecida
como “canção-prece”,
que pode ser definida como a composição musical que busca emular
esteticamente uma oração. Geralmente estas canções
caracterizam-se pela presença de um eu lírico que se dirige a Deus,
a Cristo, aos anjos ou aos espíritos superiores com um discurso no
qual pede-lhes a intercessão ou em agradecimento por algo.
Dentre
os exemplos do gênero encontrados em todo o cancioneiro espírita,
destaco a composição de Willi de Barros e João Bosco de Carvalho:
Poderosa
águia que há no alto do totem
Dá-me
tuas asas, me ensina a voar
Cruzar
os horizontes, vencer montes e mares
Com
a luz do saber, pela virtude de amar
Com
tua força tamanha
Oh,
urso me ajude a derrubar
As
barreiras da vida
Que
eu venha a encontrar
E
eu venho pedir a ti, oh, tartaruga
Que
o totem está a sustentar
Dá-me
tua certeza de um dia poder chegar
A
ver-te nas asas da águia
Na
força do urso
Em
todas as coisas criadas por ti
Eleva
minh’alma, me faz tão perfeito
Me
leva a saber
Que
estás dentro de mim
Oh,
Pai nosso que estás nos céus
Santificado
seja o teu nome
Em
favor de todos nós.
A
canção se abre com a referência a um tipo de monumento religioso
mais comum do que parece: o totem, geralmente uma estrutura vertical
na qual são entalhadas representações simbólicas de animais
característicos dos lugares onde cada sociedade originária habitava
e se desenvolveu.
O
estudo das culturas totêmicas ocupou a mente de diversos pensadores,
dentre os quais destacam-se Sigmund Freud, Émile Durkhein, Franz
Boas e Claude Lévi-Strauss, cuja leitura recomendo para quem desejar
aprofunda-se no assunto. De modo bastante superficial, direi que nas
sociedades totêmicas há o entendimento de que animais como a águia,
o corvo, o urso, o lobo, a tartaruga (apenas para mencionar alguns
dos mais frequentes no totemismo das Américas) seriam representações
dos ancestrais míticos dos homens.
Este
conceito abre-se em inúmeros sentidos de interpretação. Se os
animais são os ancestrais dos homens, então estes também são
vistos como animais, ou em outras palavras, como parte da natureza.
Seria assim uma forma de compreender que toda a criação faz parte
de um todo único, e que tal consciência se faz necessária para que
o ser humano possa viver em harmonia com o planeta. Lembro aqui de
Aílton Krenak (Ideias
para adiar o fim do mundo)
quando nos diz que o fato do homem ter perdido a capacidade de falar
com as matas, com as montanhas e animais, esquecendo-se de que estes
são seus parentes, está na raiz da destruição da natureza que
hoje põe em risco a própria sobrevivência planetária.
O
conhecimento totêmico da parentela entre homens e natureza foi
também intuído pela emblemática figura de Francisco de Assis, que
tratava tudo o que havia na natureza como irmãos, dando assim voz a
uma espécie de totemismo cristão.
Pensemos
nos símbolos totêmicos presentes na canção de Barros e Bosco,
compreendendo a águia, o urso e a tartaruga em seu aspecto simbólico
e arquetípico.
A
águia, geralmente posta no topo dos totens, bem como outras aves
específicas a cada comunidade, é aquela que vê mais longe e, por
isso, possui uma visão do todo espacial. Representaria assim a
razão, a estratégia, sendo também um sinônimo de coragem.
O
urso é associado na canção à força. As sociedades xamânicas
também o associam ao aprendizado (sim, você está pensando em Irmão
Urso)
e ao senso de maternidade.
A
tartaruga costuma estar na base dos totens, uma vez que é um animal
cujos pés estão sempre fincados ao chão. Representa a
ancestralidade, o conhecimento acumulado ao longo do tempo.
Tais
elementos, aparentemente não teriam qualquer relação com a
filosofia espírita, uma vez que serão associados, em uma leitura
superficial, a religiosidades ditas “primitivas” e portadoras de
um fetichismo arraigado nas formas como culturas ancestrais se
relacionam com o sagrado. No entanto, esta seria uma conclusão
precipitada, errônea e possivelmente preconceituosa.
Tomando
a águia, o urso e a tartaruga como ancestrais míticos dos homens,
compreendendo-os como figuras arquetípicas, pensemos como eles são
apresentados sob a ótica espírita na composição.
Dotada
da racionalidade que a visão ampla lhe confere, a águia
será representante da fé raciocinada a qual a espiritualidade nos
convida. Esta fé gera a confiança de que todas as dificuldades da
vida podem ser vencidas, o que dá aos homens a força
para prosseguir na caminhada, tal qual um urso
que aprende e se fortalece a cada passo. A paciência da tartaruga,
firme na base de tudo, pode ser associada às palavras de Paulo de
Tarso, que dirá ser a paciência um dos atributos do amor,
sempre apontado pelos espíritos superiores como a
base e o fundamento de
toda a lei divina.
Assim,
a composição de que nos ocupamos traduz o caráter universal dos
ensinamentos da espiritualidade, presentes em todas as culturas, e
finaliza demonstrando que os ensinamentos cristãos, representados
pela apropriação que faz de versos do “Pai Nosso”, são uma das
faces da relação dos homens com a espiritualidade.
Me
ocorre também que, ao dialogar com o totemismo, a dupla Willi de
Barros e João Bosco teve como referencial o aspecto do humano como
parte da natureza, o que nos leva a representações poéticas dos
quatro elementos: o ar
representado pela águia; a terra
configurada na presença imponente do urso; a água
que flui no leito como a tartaruga flui no tempo; o fogo
que desce dos céus, o Pentecostes ao qual o “Pai Nosso” evoca.
Glaucio
Cardoso
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