quinta-feira, 11 de abril de 2024

Você sabe o que você canta? - 03

Analisando músicas espíritas –


Flutuar
(OUÇA)

Grupo Arte Nascente


    É preciso esclarecer que uma análise de um poema, de uma narrativa em prosa ou da letra de uma canção não se propõe a determinar o que “o autor quis dizer” com suas palavras, mas sim em expor e explorar o que aquele texto diz para os leitores, sendo que este dito necessariamente sofrerá mudanças de um leitor para outro. Nesta série de textos sobre algumas das músicas mais difundidas e conhecidas no movimento espírita brasileiro, meu esforço tem sido o de fazer análises que, ainda que calcadas em critérios pessoais, se mostrem como uma possível chave de leitura de cada canção, servindo assim como fundamento teórico para suscitar novas interpretações das canções enfocadas e, ao mesmo tempo, servir como um modelo viável para todo aquele que deseja se debruçar sobre estes objetos artísticos.

É com essa ideia que me acerco de uma canção que tem feito sucesso no movimento espírita há pouco mais de duas décadas e que tive a alegria de ver/ouvir em uma de suas primeiras audições públicas. Trata-se da música “Flutuar”, composição do Grupo Arte Nascente (GO). Existe um ar de simplicidade melódica e letrística que fez com que a mesma se torna-se uma espécie de hit instantâneo, difundindo-se rapidamente no movimento espírita. Vejamos a letra estrofe por estrofe.

Sim, eu vou lembrar

Dessa manhã

Sentir você chegar

Dou todo meu ser

Belo jardim

Pra você brotar

A letra começa pela afirmação de uma espera, a espera por alguém cuja chegada será tão impactante para o eu lírico que permanecerá na memória deste. Dois elementos simbólicos presentes nesta primeira estrofe são relevantes para a leitura que pretendo fazer da canção: a manhã e o jardim.

A manhã nos remete ao (re)começo de algo, pois reforça a ideia da luz que chega e espanta as trevas. É até mesmo uma visão renovada do velho clichê da noite como um símbolo para a obscuridade, a tristeza, a melancolia, espantado pelos raios de uma nova aurora. Essa luz que é indispensável para o crescimento das flores, levando naturalmente à imagem do jardim no qual o interlocutor ao qual o eu lírico se dirige terá espaço para nascer e se desenvolver.

Sei! Você nunca negou

Eu só vou te encontrar aqui

Dentro de mim

Sei! Só quero te dizer

Que o tempo não acabou

Voltei a te buscar

Na segunda estrofe o eu lírico permanece em diálogo com seu interlocutor, o que nos indica que a espera, indicada na primeira estrofe, se concretizou em sua chegada, ainda que esta pareça ser mais metafórica do que concreta, ou antes uma presença ainda virtual e possível, pois o eu se dirige a este outro como se sua presença fosse algo ainda em construção. E tal virtualidade nos leva a fazer a pergunta que provavelmente passa pela cabeça do leitor/ouvinte desde a primeira estrofe: quem o eu lírico aguarda? Minha hipótese de leitura para responder a tal questão passa exatamente por esta estrofe, motivo pelo qual não a mencionei quando pensamos sobre a estrofe anterior.

Os versos dois e três da segunda estrofe dizem que “Eu só vou te encontrar aqui / Dentro de mim”, o que me parece ser a chave de interpretação da música como uma afirmação de um processo de autoconhecimento por parte do eu lírico. Sim, a canção é um diálogo do ser, do eu, consigo mesmo, em um movimento de compreender que o indivíduo precisa acima de tudo vivenciar o amor próprio, a aceitação de si.

A partir do momento em que o indivíduo se (re)conecta com sua essência, está apto a realizar seu potencial de crescimento sob as luzes da nova manhã que chega para iluminar e fertilizar seu jardim interior, que já fora identificado como “todo o meu ser”.

O eu lírico ainda afirma que compreende o quanto demorou para chegar a esse momento, mas que o “tempo não acabou” e ele está de volta para buscar ser quem sempre foi, para realizar todo o seu potencial.

Me faça mais leve

Quero flutuar

No voo da vida

Venha me levar

No momento em que o eu se aceita, ele se liberta da culpa, por isso sente-se mais leve, com a ânsia de flutuar, isto é, de alcançar a realização plena de seu ser transcendente. Assim o eu concretiza o que está exposto na pergunta 919 de O livro dos espíritos e em sua resposta:

Qual o meio prático mais eficaz que tem o homem de se melhorar nesta vida e de resistir à atração do mal?

“Um sábio da antiguidade vo-lo disse: Conhece-te a ti mesmo. [Grifos meus]

Assim, conhecendo-se a partir desse reencontro consigo, o ser humano representado pelo eu lírico da canção do GAN está apto a melhorar seu viver, pois passa a agir de acordo com sua essência original que ficou adormecida até que um amanhecer renovador o despertasse.

Glaucio Cardoso

quinta-feira, 21 de março de 2024

Entre chamas e cinzas: Moisés Alves por Alberto Pucheu

 

Uma tela escura com um contador marcando o tempo e uma voz interrompida pelo som de tambores, numa batucada que não deixa de lembrar os sons de uma fábrica.

Assim começa “moisés alves: o fogo que antecede as cinzas” (assim mesmo, todo em minúsculas), mais recente atrevimento fílmico do poeta e pesquisador Alberto Pucheu, que de tempos em tempos tem nos brindado com essa espécie de documentários situados entre o biográfico e o manifesto, mas sempre com a eleição da voz posta em poesia.

No melhor estilo de “uma câmera na mão e um ideia na cabeça”, do incontornável Glauber Rocha, Pucheu nos toma pelas mãos e nos apresenta o poeta Moisés Alves, autor de mangue (Martelo Casa Editorial), em um filme que expõe tanto a maturidade do cineasta, que alcança aqui um novo patamar como contador de histórias sem roteiros fechados, quanto a de um poeta que parece situar-se na convergência de múltiplos mundos.

Moisés, um nome que traz em si tanto tempo, um nome de patriarca (e, portanto, de ancestral) que liberta consciências e abre mares por onde os homens e mulheres desejosos de novos horizontes devem transitar.

O poeta nos entrega sua voz e suas memórias, ambas manifestando-se em versos portadores de uma visceralidade desconcertante. As lembranças da mãe, da avó e da vida tornam-se não a matéria-prima para a construção dos poemas-artefatos, mas o combustível para a queima transformadora da realidade temporal e passageira em algo mais perene, fogueira em cinzas, brasa e cinzas,, calor e cinzas, cores e cinzas.

A junção dos poemas, depoimentos e imagens cria uma atmosfera de transcendentalidade em nada semelhante ao estado contemplativo tão comumente associado à tradição judaico-cristão; é uma espécie de sagrado pulsante, vivo e atuante, um sagrado cujos templos e altares são os corpos que caminham sob o sol, as vozes que se erguem com a alegria de movimentar-se sobre a Terra.

Transitando organicamente de um poema a uma confissão, de uma imagem de celular a um depoimento capturado por uma lente profissional que assume o papel de olho clínico tanto do cineasta quanto do espectador, o filme se constrói dentro de uma espécie de tempo mítico que não vemos passar, encerrando-se com um pôr-de-sol que não representa um fim, mas um movimento cíclico no qual filme e poeta se situam.

Glaucio V. Cardoso



segunda-feira, 11 de março de 2024

Minha fala

Para Lucas da Paz

Eu não falo feito branco.
Eu não falo feito negro.
A minha fala traz
O couro de africanos
E as cordas de europeus.
Minha fala vibra
Guarani, bantu, latim,
Minha fala não tem uma língua
Ou tem tantas que nem sei.
Minha fala é do oriente
E canta no ocidente.
Minha fala é norma culta
Em colóquio com o popular.
Minha fala fala de mães, pais e avós.
Minha fala tem Torá e Alcorão.
Minha fala tem letra e tem só som.
Minha fala não é minha,
Mas me pertence e possui.
Minha fala é coletiva e é só minha,
Minha fala é ancestral
E se renova.
Minha fala não tem tempo,
Minha fala não tem sexo,
Minha fala não tem cor,
Minha fala tem história.

Glaucio Cardoso
07/03/2024