Para
Alberto Pucheu e suas fronteiras
Já
havíamos criado os computadores,
o
preservativo descartável,
a
máquina vapor e a roda dos enjeitados.
Já
domináramos o fogo,
os
átomos e os outros.
Já
tínhamos conseguido ligar o mundo todo
numa
só tomada (e que não era a de consciência)
e
havíamos reduzido o horizonte
ao
retângulo líquido a que nos acorrentamos.
Só
o que faltava era oficialmente entregar à máquina
o
que antes era nosso privilégio.
A
falsa sensação de facilidade
nos
cega para o que ocorre diante de nossos olhos.
As
mesmas empresas que acusam de pirataria
aqueles
que baixam filmes e livros e músicas e HQs
são
aquelas que investem em algoritmos que pilham
as
artes alheias e constroem frankensteins de partes canibalizadas.
Para
que poetas em tempos de inteligência artificial?
Basta
teclar meia dúzia de comandos
e
o texto surge pronto,
carregado
de clichês confortáveis,
mas
o poema verdadeiro e humano
deverá
sempre representar o incômodo e o inconformismo.
Atrás
do algoritmo que impõe o alucinado ritmo da produtividade e rapidez,
esconde-se
o projeto trevoso da eliminação da alma humana.
Não
escrevemos ou lemos poesia
na
busca cômoda do que nos parece conforto.
Escrevemos
e lemos poesia para que
alcancemos
o logro e o engodo,
para
trapacear contra um mundo
que
a cada dia deseja nos reduzir
a
cidadãos consumidores produtivos.
Escrevemos
e lemos poesia
como
um gesto libertário que não se pode conter
em
comandos prontos de quem tem ódio por aqueles
que
escrevem e leem poesia.
Somos
poetas e resistentes,
talvez
nunca vencedores, porém sempre insubmissos.
Escrevemos
nossos poemas em blocos de papel ou de ideias,
lemos
poesia em livros,
em
blogs,
em
posts,
em
postes,
em
muros
e
nas conduções.
No
alvorecer do que promete ser o ocaso da individualidade,
o
gesto simples de escrever em papel
é
ato de insubordinado;
o
gesto simples de criar rimas líricas
é
ato de insubordinado;
o
gesto simples do improviso, do repente, do slam
é
ato de insubordinado;
o
gesto simples de se declarar poeta
é
ato de insubordinado.
Insubordinados
somos todos nós,
os
que resistimos e persistimos
em
criações inteligentemente artificiosas
carregadas
da ilusão do espontâneo
e,
ainda assim, mais sinceras, verdadeiras e vicerais
do
que quaisquer roubos perpetrados
por
algoritmos incapazes de compreender
a
verdade ficcionalizada no mais profundo de nós.
Escrevemos
e lemos poesia por sabermos
que
pedir ao algoritmo que faça aquilo
a
que falsamente alguns têm dado o nome de “arte”
equivale
a menosprezar o sacrifício de Prometheus
e
entregar o fogo sagrado não de volta aos deuses,
mas
aos torpes homens de negócios.
Para
que poetas em tempos de inteligência artificial?
É
a pergunta que mesmo ao ser formulada
parece
impossível de ser dita.
E
a resposta talvez se mostre
mais
pelo gesto que pela palavra.
Você,
eu, cada um de nós que ainda insistimos
em
escrever e ler poesia,
contra
todo o horror,
contra
todos os extremos,
contra
todo o mecanicismo,
somos
a prova e a esperança
de
que algo há de persistir e de sobreviver
a
estes tempos de desumanização
que
se abate sobre nós.
Glaucio
Cardoso
entre
maio e agosto de 2025